Enquanto viajamos pelos Balcãs, as emissoras e a rede mundial escancaram atrocidades inimagináveis no Oriente Médio, a ponto de duvidarmos da possibilidade de um futuro civilizado para a humanidade. Ao mesmo tempo em que dormimos tarde para acompanhar um pouco o que está acontecendo, temos tido a oportunidade durante o dia de aprender muito.
Visitar Sarajevo, conversar com pessoas que viveram sob o cerco de quase quatro anos debaixo de constante bombardeio não tem preço. A tenacidade dos habitantes daquela cidade mereceu um eloquente elogio do primeiro presidente da Bósnia e Herzegovina, Alija Izetbegovic,: “Uma vez feita a análise, e quando o milagre da resistência bósnia for compreendido a uma distância histórica, verificar-se-á – e estou certo disso – que o segredo estava em algum lugar das almas ou do carácter do povo”.
As privações a que estiveram expostos, debaixo de condições climáticas muito severas, nos autorizam a qualificar a resistência como uma das grandes epopéias da história, para a qual um túnel de oitocentos metros contribuiu de forma decisiva, permitindo a passagem de víveres, soldados e munição.
Em Belgrado visitei o memorial de Tito. Nascido em 1892, foi ferido e preso na primeira guerra, presenciou a revolução bolchevique, ingressou no partido comunista, foi sentenciado à detenção por cinco anos e mais tarde teria atuação expressiva na libertação da Iugoslávia na segunda guerra. Comandou o novo arranjo, com seis repúblicas, e forcejou para que se mantivessem unidas. Sua morte, em 1980, foi o tiro de largada para a separação de todas elas depois que a União Soviética ruiu.
Admirei na Sérvia a gentileza sóbria das pessoas e sua eficiência. Não são arreganhados nem rudes e ao longo dos dias apenas confirmaram o nível intelectual daquela região, conjugado com perceptível disciplina. Tinha como referência, em minha vida acadêmica, Miomir Vukobratovic, um craque de primeira grandeza no estudo do controle dinâmico de robôs. E o contato nas ruas não decepcionou.
Conhecer um pouco da história de Nikola Tesla e visitar o museu que o homenageia foi uma das pérolas da viagem. Com talhe de prodígio desde cedo, Tesla estudou em Praga, trabalhou em Budapeste e aos vinte e cinco anos emigrou para os Estados Unidos portando uma carta de recomendação para Thomas Edison: “Conheço dois grandes homens. Um é você, o outro é o jovem que está parado diante de você”.
Reconhecido mundialmente por sua genialidade, trabalhou pouco tempo para Edison. Responde por centenas de patentes, nunca casou e não deixou descendentes. Ao final da vida registrou seu desapontamento: “Todos esses anos que passei a serviço da humanidade não me trouxeram nada além de insultos e humilhações”.
Decidimos conhecer uma cidade romena. Pela proximidade e por informações preliminares, selecionamos Timisoara. Mal sabíamos o quão feliz seria a escolha. Muito bonita, histórica, capital européia da cultura em 2021, foi também o berço da revolução que derrubaria Ceausescu e varreria o comunismo das terras da Transilvânia.
O comunismo já andava caindo pelas tabelas e o ano de 1989 registraria, em novembro, a queda do muro de Berlim. No mês seguinte a população de Timisoara – pela voz tímida do “Fora Ceausescu”, no início, deflagrada por jovens,- pagaria com mais de mil vidas a luta pela liberdade. A violência policial foi fermento para a revolução. Quando operários marcharam pelas ruas e o povo lastimava suas mortes, o exército ainda seguiu obediente ao poder, reprimindo as manifestações, que se estenderam por outras cidades.
Ceausescu não entendeu de fato o que estava a acontecer. Num discurso em Bucareste acusou os manifestantes de hooligans e fascistas! Para sua surpresa, vozes se ergueram na praça, gritando “Fora Ceausescu”. As horas que se seguiram teriam rápido desfecho. Ceausescu tentou fugir de helicóptero. Temeroso pelo risco de serem atingidos em pleno ar, o piloto aterrisou numa estrada. O fugitivo e sua esposa tomaram um carro, depois outro, mas foram apanhados. Julgados de forma irregular e sumária, foram fuzilados no paredão de um quartel.
O que mais me chamou a atenção no vídeo do memorial da revolução foi a mudança do comportamento do exército romeno. Fiel ao ditador, atacou o povo. Cuja bravura e determinação mudariam o jogo. Quando o exército percebeu, ainda que de forma difusa, que o poder mudava de mãos, somente então ensejou no povo a leitura de que “eles estão conosco”.
Mal comparando, os que se decepcionaram com as Forças Armadas brasileiras, em episódios recentes, talvez tenham apenas ignorado que a disciplina, base das instituições militares, e as punições pesadas que incidem sobre os contrários à hierarquia, fazem com que as forças estejam sempre com o poder. Se este mudar de sinal, eles tampouco mudarão na essência: seguirão obedientes ao poder, ora em mãos diversas, ainda que dispersas e confusas no início do novo processo.
Não por mera coincidência, lembrei que Olavo de Carvalho viveu um período na Romênia e que em um dos seus vídeos afirmou que o Exército no início não apoiaria o povo brasileiro, numa eventual manifestação, mas aderiria se o processo ganhasse corpo. Uma aula de história em Timisoara.
O contato com a história de Sarajevo, os dias em Belgrado e a oportunidade de conhecer um pouco da história recente da Romênia transcorreram enquanto recrudesce a crise no Oriente Médio, cujos fatos induzem nostalgia pelo paraíso perdido,
Tito imaginou possível transformar em iguais os diferentes, irmanar etnias, uniformizar os desiguais. Por fim, pareciam irmãos. Mas não eram. A estrada de sofrimentos está aberta, apenas aguardando que a história percorra seus quilômetros.
Estas reflexões ensejam as palavras de Tesla, atento observador de seu tempo:
“Estamos vivendo um tempo de conquistas tecnológicas sem precedentes que nos conduzem a mais e mais controle das forças da natureza e aniquilação do tempo e do espaço. Mas este desenvolvimento, enquanto contribui para o nosso conforto, conveniência e segurança da existência, não está na direção da verdadeira cultura e iluminação. Ao contrário, é destrutivo para os ideais. A real causa para a queda da nação é a inabilidade da espécie humana para resolver os problemas sociais, morais e espirituais”.