Minha vida no Chile teve três momentos bem diferentes, o primeiro foi de puro improviso, após entrar no país no final de uma longa e tortuosa jornada. Não tinha nenhum contato, não conhecia ninguém, não tinha dinheiro nem casa para morar. Sobrevivia graças à música, tocando aqui e ali pela comida, dormindo ao relento num bosque, debaixo de uma ponte ou até mesmo num cemitério. Tinha cruzado a fronteira com o canadense Bill e andamos juntos algum tempo, de Santiago uma carona nos levou para os lados do oceano Pacífico.
O dono da caminhonete se chamava Raimundo, era comerciante e chegando em Valparaiso falou que iria para Isla Negra, para entregar algumas encomendas. Ao ouvir isso, pedi para seguir viagem com ele. Na minha cabeça, Isla Negra era um lugar onde o vento corria feito um cavalo na noite, de grandes conchas marinhas dispersas na areia, de corais banhados pela espuma branca, dum mar imenso estrugindo nos alcantis… E enquanto nos aproximávamos do lugar, fui lembrando versos do poeta que ali viveu.
Y yo, mínimo ser,
ebrio del gran vacío constelado,
a semejanza, a imagen del misterio,
me senti parte pura del abismo,
rodé con las estrellas,
mi corazón se desató en el viento.
Chegamos num pequeno lugarejo, Raimundo estacionou e foi entregar um pacote. A uns 50 metros se avistava o mar, sem nada de especial. Quando Raimundo voltou, perguntei onde estava a ilha.
– Que ilha? Isla Negra é o nome desse povoado de pescadores, mas não tem ilha nenhuma…
Bill e eu ainda andamos uns dias juntos, entre Valparaiso e Reñaca. Na volta para Santiago, na saída de Viña del Mar um carro parou, mas só havia lugar para um de nós, levou o Bill. Tínhamos combinado nos encontrar em Santiago, mas nunca mais vi ele. Continuei a caminhar durante dois dias, só me alimentando de amoras silvestres e dormindo entre as árvores nas margens da estrada, ninguém parava para me levar.
Na manhã do terceiro dia a fome era tanta que até comecei a rezar, pedindo ajuda. Aí me veio à lembrança um sonho recorrente, em que me vejo recolhendo dinheiro perdido no chão. E passei a caminhar com os olhos grudados na terra, e pouco atento aos carros que passavam. De repente estaquei, certo que estava tendo uma alucinação: na minha frente vi uma nota de dez escudos! Suja, meio amassada, estirada no chão. Pisquei, esfreguei os olhos, a nota continuava no mesmo lugar. Então me agachei para apanhá-la, minha mão tremia. A nota estava bem empoeirada, sacudi com cuidado para não rasgar. E desistindo das caronas, me afastei da estrada e caminhei em direção a uma casinha que se avistava a uns quinhentos metros no descampado.
– Buenos dias! – chamei batendo palmas, várias vezes, até que se abriu uma janela e apareceu uma mulher de feições mapuches. Perguntei se ela podia me vender algo de comer e ergui a mão com a nota de dez escudos.
A mulher me olhou em silêncio por uns momentos, me deu as costas e sumiu no interior da casa. Depois de alguns minutos ela reapareceu com um grande pão redondo nas mãos. Me aproximei, peguei o pão e entreguei os dez escudos, ela pegou o dinheiro e sumiu de novo. Então sondei as cercanias, em busca de um lugar para sentar e comer, mas resolvi voltar para a estrada. Ao dar os primeiros passos uma voz atrás de mim chamou:
– Señor…
Era a mulher mapuche na janela, acenando com o troco dos dez escudos na mão.
Pouco depois, novamente na beira da estrada, me acomodei encostado em uma árvore e arranquei um bom naco daquele grande pão de massa amarela. Fui comendo devagarinho, deixando o pão se desfazer na minha boca. Me parecia que, em toda minha vida, nunca tinha comido algo tão maravilhoso. E aos poucos fui sentindo meus pés gelados se aquecerem, de uma intensidade como nunca havia sentido antes. Ato contínuo, ferrei no sono. Ao despertar, retomei o autostop e logo consegui uma carona que me largou na entrada de Santiago, onde peguei uma micro para o centro.
Dentro da micro, buscando um assento livre, uma voz me interpela:
– O senhor é brasileiro?
Era um homem de meia-idade com cara de turco (que no Chile quase não se vê, negros também não), seu Hermenegildo Fonseca, e reconheceu o meu sotaque ao perguntar o preço da passagem. Batemos um papo e Hermenegildo me convidou para vir conhecer sua casa e sua família, na Quinta Normal, uma comuna logo atrás da Estación Central dos trens.
Fiquei alguns dias lá, ele era casado com uma chilena e tinha um filho de seis anos que adorava me fazer de gato-sapato, o guri logo me apelidou de tio Tribilin (Tribilin no Chile é o Pateta, amigo do Mickey Mouse).
Depois, de novo na rua, quis conhecer os trens chilenos, me toquei para a Estación Central.
(Sempre achei que uma das grandes tragédias brasileiras foi a destruição das ferrovias, para incentivar a indústria automobilística. O certo teria sido aumentar e aperfeiçoar a rede.) Me dirigi para a plataforma de onde partiam os trens para o sul do Chile, por onde tinha andado e gostaria de rever com mais tempo. Havia um trem ali parado, e pus-me a examinar os vagões.
Estava nisso, andando pela plataforma, e quase tropeço em alguém que estava sentado no chão, em posição de zazen. Era um rapaz de longos cabelos negros encaracolados, e quando olhei-o pela frente tive a surpresa de reconhecê-lo. Ele estava meditando de olhos fechados, dei um tempo. Quando ele abriu os olhos eu saudei:
– Hola, quando llegaste?
– Hola! Acabo de llegar…
E me explicou que era a primeira vez que botava os pés em Santiago, e quis começar com uma meditação. A gente tinha estado na mesma comunidade no sul da Argentina, mas nunca tinha se falado. Saindo da Estación Central, perambulamos por Santiago e a noite nos encontrou nas proximidades do Museo de Bellas Artes, cuja parte traseira estava em obras de remodelação, ali armei minha rede, entre dois andaimes. Ao passar pelo Parque Forestal um magro de aspecto meio esverdeado tinha se grudado na gente, emprestei-lhe um dos meus cobertores. Jorge – assim se chamava o argentino – se enfiou no sleeping bag e dormimos, fazia pouco frio.