Estamos a comemorar os 60 anos da Encíclica «Pacem in terris» de João XXIII, inesperada pelo tema, pela abordagem, pelos destinatários e pela interacção com os media. Uma novidade em toda a linha!
Poucas vezes a Igreja tinha falado tanto sobre a paz. Sobretudo, S. João XXIII fê-lo com a consciência de dar voz a uma mensagem de Deus dirigida a toda a humanidade, não apenas aos bispos, nem só aos católicos. A própria Encíclica refere esta audiência alargada, razão para que a televisão tenha transmitido em directo a cerimónia de assinatura. Em 1963, um directo fora dos estúdios era coisa excepcional.
Uma das novidades da «Pacem in terris» foi a insistência no papel das Nações Unidas e o pedido de abolição das armas, em particular do armamento nuclear. A preocupação com o arsenal nuclear justifica-se porque ele se destina a arrasar cidades inteiras, sem distinguir entre alvos militares e civis. Além disso, não tem carácter defensivo, não visa proteger mas vingar-se.
A constituição «Gaudium et spes» do Concílio Vaticano II designa genericamente este armamento como «armas científicas», para englobar a bomba de urânio, a de plutónio, a de hidrogénio, a de neutrões, a de cobalto e todas as variantes inventadas e por inventar. Hoje, talvez tivesse falado em «armas de destruição massiva»:
«As armas científicas, aumentaram desmesuradamente o horror e maldade da guerra, porque (…) podem causar enormes e indiscriminadas destruições, que vão muito além dos limites da legítima defesa». O apelo assumiu um tom especialmente dramático: «Fazendo suas a condenação da guerra total já anteriormente pronunciada pelos Sumos Pontífices, este sagrado Concílio declara: Toda a acção bélica que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem hesitação. O perigo peculiar da guerra hodierna está em que (…), por uma consequência quase fatal, pode impelir às mais atrozes decisões a vontade dos [que estão de posse das armas científicas]. Para que tal nunca venha a suceder, os Bispos de todo o mundo, reunidos, imploram a todos, sobretudo aos governantes e chefes militares, que ponderem sem cessar a sua tão grande responsabilidade perante Deus e a humanidade».
O magistério posterior desenvolveu os princípios da «Pacem in terris». Por exemplo, o Concílio afirma que «de novo se deve declarar que a corrida aos armamentos é um terrível flagelo para a humanidade e prejudica os pobres dum modo intolerável. E é muito de temer, se ela continuar, que um dia provoque as exterminadoras calamidades de que já presentemente prepara os meios».
O perigo de utilização do armamento nuclear é tão real que o Papa Francisco declarou imoral não apenas o seu emprego como o fabrico e a posse deste arsenal. Porque quem entrega a alguém uma arma que seria imoral utilizar assume uma pesada responsabilidade se ela vier a ser utilizada.
O Concílio também afirma que, assim como as comunidades mais pequenas necessitam de uma autoridade (os municípios, as regiões, os países), o conjunto dos povos necessita de uma autoridade, também para conservar a paz: «É claro que nos devemos esforçar por todos os meios por preparar os tempos em que, por comum acordo das nações, se possa interditar absolutamente qualquer espécie de guerra. Isto exige, certamente, a criação duma autoridade pública mundial, por todos reconhecida e com poder suficiente para que fiquem garantidos a todos a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos».
Ainda há tantos países com Governos aberrantes, que não é fácil criar uma autoridade pública mundial em que todos possam confiar. O Concílio Vaticano II reconheceu esta dificuldade e por isso acrescentou: «Porém, antes que esta desejável autoridade possa ser instituída, é necessário que os supremos organismos internacionais se dediquem com toda a energia a buscar os meios mais aptos para conseguir a segurança comum». A seguir, o Concílio dedica toda uma longa secção a tratar da «Construção da Comunidade Internacional».
Uma das insistências do Concílio é na redução do armamento, porque o mundo faz lembrar os «cowboys» do «Far-West», cada um com as suas espingardas. É preciso que todos as entreguem a um «sherif» fiável, que esteja acima das partes e garanta a segurança de todos.
A invasão da Ucrânia, o terrorismo do Hamas, a vingança de Israel infligida aos povos da Palestina… todos estes conflitos clamam por uma autoridade mundial capaz de se impor. Mas, para isso —como diz o Concílio e o Papa Francisco tem repetido— é precisa uma profunda conversão dos corações.