Caminhar pelo meio dia no centro de Santiago era como mergulhar num oceano de palavras, por todo lado havia grupinhos debatendo a conjuntura nacional e internacional em acaloradas discussões.
Se alguém quisesse tomar um cafezinho, tinha que ser no Café Haiti, na calle Ahumada. E ali o gênero masculino se deleitava nos papos, enquanto sorvia a rubiácea açucarada e olhava as pernas das mulheres de mini-saia que serviam.
Ali era uma algaravia digna de um viveiro de caturritas, mas de repente uma voz se fazia ouvir aos berros, concentrando as atenções. Era o Louquinho da ITT, um ex-professor universitário que tinha entrado irremediavelmente em parafuso e com frequência aparecia no Haiti. Durante alguns minutos ele erguia com a mão uns jornais velhos e denunciava ao mundo a grande conspiração da ITT contra o Chile. Em dado momento ele silenciava e se acercava rápido do balcão, para que alguém lhe pagasse um cafezinho.
A conspiração da ITT que o Louquinho revelava em primeira mão era coisa que todo mundo já sabia, mas sempre saltava um cafezinho, que ele bebia sofregamente e ato contínuo se escafedia para a rua.
Inútil querer puxar conversa com ele, era autista em grau severo.
Seguindo pela Alameda, uma aglomeração de pessoas em frente ao Palacio de La Moneda ouvia as palavras do Canuto, que pregava o arrependimento e a penitência, anunciando a vinda próxima do Filho. Sua voz soava como se tivesse um microfone e falasse debaixo d’água. Dizem que ele era mudo, mas por um milagre de Deus, de repente começou a falar, com essa voz de caverna submersa. De vez em quando ele interrompia a pregação, virava a cabeça de cabelos ruivos para o alto e encarava o sol de lado, semicerrando os olhos e arreganhando os dentes, onde refulgia um canino de ouro. E conversava com Deus Pai, como se fossem velhos amigos que se reencontram. Eu parei para ouvi-lo e assisti o lance todo.
– Olá! Estás aí acompanhando tudo, né? Larga essa preguiça e vê se manda uma força pra esse pessoal, aqui em baixo tá uma zorra duca. Pode crer, eu faço tudo o que posso pra ajudar, mas eles estão todos muito desubicados…
Falando com Deus ele era bem amável, sorrindo e evitando cobranças. Mas depois retomava a pregação aos terráqueos, numa catilinária veemente de inquisidor submarino que convocava o céu e o inferno.
Para quem vinha de um país onde estavam proibidas as aglomerações e falar palavras tipo justiça, democracia, direitos humanos em plena rua dava cadeia (vivi em carne própria), Santiago era uma festa.
Eu andava pela cidade num encantamento perene, entabulava conversas e facilmente alguém me convidava para almoçar ou até a passar alguns dias com sua família, pela simples curiosidade e pelo prazer de acolher e demonstrar hospitalidade.
O fascínio de conhecer uma cultura diferente, onde a poesia e a música eram fatores importantes na vida das pessoas, foi a tônica dos meus primeiros meses no Chile. Viajei bastante pelo país nesse período, que terminou com minha decisão de parar e deitar raízes, me integrando no grande projeto de transformação da vida que se estava levando a cabo.
Assim começou um segundo momento, que foi o mais longo: fixei residência com amigos em Las Rejas, passei a me informar melhor, fazer contatos e batalhar para conseguir trabalho. Fui bem sucedido e ao cabo de poucas semanas estava com dois empregos remunerados, um com o grupo de teatro Manos e o outro no restaurante da Caixinha, organização de solidariedade criada para auxiliar os asilados brasileiros no Chile.
Olhando esse tempo do plano psíquico, o primeiro momento foi do sonho, que cedeu lugar ao momento da realidade, que foi aniquilado pelo terceiro momento, em que estou agora, aqui debaixo deste piano negro na Embaixada.
Que é o momento do pesadelo.
Hoje acordei com um choro de bebê, e parecia vir de dentro do piano, pois fazia vibrar algumas cordas, produzindo tênues sons harmônicos. Ao levantar fui saudado com as seguintes palavras:
– Olá! Desculpa se perturbamos teu sono, mas um pai solteiro não tem muitas opções aqui neste lugar.
Era o Sergio Leiva, um refugiado chileno que entrou trazendo no braço esquerdo sua nenê, depois de empurrar um carabineiro para escanteio, com o direito. Ele estava com a filha deitada sobre o tampo do piano, na tarefa de trocar as fraldas. Sergio é um cara comunicativo, e parece que temos boa sintonia. Me contou que escreve poemas, ficou de me mostrar alguns. Então, agora o piano ganhou uma nova serventia.
Ontem fiquei até bem tarde na Peña de Lavandería, sozinho, depois que todo mundo se retirou. A cozinha em frente estava às escuras, mas de repente apareceu um pessoal, Moncada, Luiz, Cabeça e mais um outro uruguaio. Eles vinham muito animados, conversando e dando risadas, mas tudo em voz baixa. Entraram na cozinha mas não prenderam as luzes, acenderam velas. Dali a pouco escutei um som de rolha saltando da garrafa…
Acerquei-me e perguntei se cabia mais um no festim das sombras.
– Claro, vení, sentáte con nosotros! – me convidou o Moncada.
Eles estavam sentados em círculo, no chão sobre cobertores. No meio havia uma garrafa de vinho e uma tijela com queijo, presunto, azeitonas… Depois Moncada me explicou a camanga, prometi não espalhar.
Eles descobriram um recinto onde está a adega e a despensa do embaixador…
Estava tudo trancado à chave, mas tupamaro é especialista nessas coisas. Pacientemente eles soltaram todos os parafusos das portas, abriram, entraram e fizeram uma “pequeña expropriación” (palavras do Moncada), sem bagunçar nem tirar nada do lugar. Depois saíram e parafusaram tudo de volta na sua posição original.