Mário fora em tempos um ilustre professor catedrático de renome, lisonjeado e admirado por muitos, um homem bem-parecido e bem-educado, mas com o tempo e a doença, tornara- se num velho feio, áspero, azedo e taciturno. Preso há uns dois anos a uma cadeira de rodas, já quase sem amigos vivos e perdido o interesse pelos muitos trabalhos de investigação a que dedicara 50 anos de vida profissional, passava agora o dia num sofá, ou na cadeira de rodas, a olhar para a televisão todo o dia, mas sem ver, nem ouvir nada. Para comer era também uma enorme dificuldade! Nada lhe sabia bem! Recusava muitas vezes os alimentos, pois só pensava em morrer…a mulher desesperava!
Os dois filhos ausentes no estrangeiro, não podiam ajudar muito, mas em dada altura aconselharam a mãe a sair da cidade e a levar o pai até à quinta na aldeia natal. Com ajuda das assistentes sociais da Junta de Freguesia e do Centro Social, talvez a mudança de ares lhe fizesse bem e ajudasse a arrancá- lo à depressão em que vivia…
Nos primeiros dias daquele mês de julho, depois da viagem de comboio e táxi, Mário protestava imenso por causa das incomodidades do transporte e, ou estava calado e a dormitar horas seguidas, de cabeça pendente, babando- se um pouco, ou acordava de repente e gritava com todos, em especial com sua mulher, Henriqueta, que carinhosa e pacientemente continuava a cuidar dele, sem jamais se queixar.
Um dia porém, a mulher percebeu que curiosamente, havia uma coisa que ainda lhe dava algum gosto: ver o Antônio, o velho jardineiro, a trabalhar na horta e no jardim.
Por isso, no fim da higiene que tanto o irritava, com ajuda das cuidadoras começaram a levá- lo diariamente, rampa abaixo, até ao jardim e ali ficava ele a ver o Antônio a trabalhar…almoçava por baixo de uma enorme nogueira, depois dormitava à sombra e quando acordava, pedia de novo para o levarem até perto do jardineiro.
António era quase da mesma idade de Mário; tinham andado na mesma escola primária, mas ao contrário do patrão, como os estudos não eram o seu forte, nem os pais tinham tido dinheiro para o fazerem doutor, Antônio deixara a escola aos doze anos e ficara ali pela terra a ajudar os pais e a trabalhar no campo. Herdara o jeito para a agricultura e Mário dera- lhe uma pequena casa e contratara- o para cuidar da quinta. Andara na tropa, mas escapara à guerra em África, (ninguém sabia como!), casara aos 25 anos com a sua Maria, também colega de escola, e tinham sido pais de cinco filhos, que depois de crescidos tinham emigrado para França e Luxemburgo. Também estavam por isso sozinhos, mas eram um casal feliz; e ao contrário do prof. Mário, António estava sempre bem-disposto, assobiando e cantarolando. Apesar de muito encurvado e apoiado numa bengala de pau, com os joelhos a fraquejar, continuava a cavar, a plantar, a limpar as ervas ruins, cuidando do jardim e regando a sua horta com um amor e um orgulho que transpareciam no brilho dos olhos e no riso aberto da boca desdentada…
Pouco a pouco, Mário foi acordando daquela tristeza e irritabilidade e voltava a querer conversar. Um dia, lembrou -se até de que em tempos gostava de favas…e o Antônio, logo foi apanhar algumas e sentou -se num banquinho ao lado do patrão a descascá- las, dizendo:
‘A minha Maria vai cozinhá- las com um raminho de coentros e o patrão vai ver que come e até vai chorar por mais…’
Mário e António iam falando das suas recordações de criança …
…’Não quero que me chames patrão, Toino! Chama- me Mário, como quando éramos colegas de carteira… lembras- te quando jogávamos ao berlinde e me ganhavas sempre? E como eras excelente à baliza e eu um ‘frango’ sem jeito nenhum para a bola???
’Lembro, pois, patrão! E também me lembro como vossemecê me fazia as contas e os problemas que eu sempre errava, para a professora não se zangar comigo… mas o patrão estudou tanto … que eu não posso chama- lo de outra maneira… tivémos vidas tão diferentes…vossemecê é uma pessoa importante e eu não …’
‘Não digas isso, Toino! Hoje não sou nada importante… e é verdade que pude estudar, mas agora és tu que me ensinas muito… tenho pensado no modo como vives, as dores que deves ter nas costas… mas estás sempre alegre, sorridente, desde manhã até ao pôr-do-sol… sempre a trabalhar…e as coisas que tu sabes fazer e eu nem imaginava…e já vi como gostas da tua Maria e ela de ti… tens- me ensinado muitas coisas, Toino! Olha, digo- te mesmo mais: os trabalhos que fiz, espero que tenham sido úteis para os avanços da ciência, mas por conta disso perdi a noção do mais importante na vida e do tempo a correr… sabes? Sinto que não fui bom pai, nem sou bom marido… e hoje já não sirvo para nada… estou nesta cadeira, sou um inútil e não estava preparado para um golpe destes…’
Nesse momento, António levantou- se, como pôde, pousou o alguidar onde descascava as favas, e com os olhos marejados de lágrimas, coxeando, aproximou- se do patrão e deu- lhe um grande abraço, sem dizer palavra…
Mário só conseguiu dizer: ‘Obrigado, Toino, obrigado meu amigo!’
Nessa noite, António foi bater à porta dos patrões, e um tanto atrapalhado, disse à D. Henriqueta que ele e a sua Maria tinham uma casa pobrezinha, mas gostavam muito que os patrões la fossem a casa almoçar ‘umas favinhas bem temperadas à moda da terra’ no dia seguinte… e assim foi! E no fim ainda houve um copinho de aguardente de medronhos…’só para alegrar a gente, vá lá, só um…!’
Nesse almoço, Mário e Henriqueta sentiram- se enternecidos por se verem cumulados de atenções. À despedida, com a simplicidade de gente boa, Maria disse- lhes que rezava, diariamente, para que o patrão voltasse a andar…e acreditava que tal aconteceria…
Os meses foram- se passando, Mário já não queria voltar para a cidade. Henriqueta também se sentia muito feliz ali no campo, vendo os progressos do marido! Ele mudara radicalmente de semblante e de humor, passava o dia ao ar livre, interessava- se pela vida no campo, e combinara com António chamar alguém para reconstruir um galinheiro e arranjar criação …até que um dia, as assistentes sociais da zona, vendo Mário tão bem disposto, propuseram que o Senhor Prof fosse a uma consulta ali perto e começasse a fazer fisioterapia com um jovem, muito bom profissional … e ele aceitou. De imediato simpatizou com o fisioterapeuta!
Inicialmente, foi difícil pela perda de musculatura e porque os exercícios eram um pouco cansativos, mas Mário recuperara o desejo de viver e com força de vontade, ao fim de uns meses voltava a andar.
Nesse dia, Mário até chorou… e quis chamar António para ele o ver de pé a andar e para lhe agradecer!
‘Toino, quanto te devo… dá cá mais um abraço! Foste tu que me tiraste da fossa…sem ti nada disto seria possível! Salvaste- me a vida!’
‘Ora, ora, patrão, agradeça antes à minha Maria, que ela é que acredita em milagres…’