A guerra é um abismo de mal. O homem faz guerra de ódio, raiva, vingança, crueldade, matança, desespero e assim desespera os seus irmãos. Haverá outro tipo de guerra? Muito se está escrevendo, discursando, falando, opinando e perdura cada vez mais a tendência a pensar que a paz das guerras começadas é difícil, demorada, acima de muitos esforços e negociações mesmo de negociadores hábeis e de boa vontade. Para os de má vontade, manhosos, falsos e vingativos não é possível porque o negociar é só outra estratégia de guerra continuada, às vezes ainda mais cruel e horrorosa. Será que, por isso, nenhuma guerra devia começar? Parece que Jesus no Evangelho deixa um conselho forte nesse sentido: um rei que pensa numa guerra contra outro rei deve considerar bem se vale a pena e se não é melhor acabar logo a guerra antes de a começar e passar a fazer a paz? Mas Jesus pede mais e melhor: trocar tudo da guerra por Ele (veja em Lc.14, 30-33).
Será que o homem é um ser de guerra? Alguns pensadores socorrem-se de filósofos para encontrar razões dessa condição de o homem ser pessoa de mal. É um ser de finitude, logo, imperfeito e de mal, de matar, roubar, mentir, cruel. E, pior ainda, ousam, nas suas guerras, chamar de bem às crueldades, ao matar, às injustiças à mentira. Até se põe a correr que a pós-modernidade é de pós-verdade e mentira. Não nos iludamos, contudo, porque também há pessoas de paz e não de guerra, pessoas de muito bem. Há santos que evitam abismos de mal evitável. Como é possível se são limitados pela finitude como todos os outros? Fazem o mal às vezes. São pecadores como todos os homens, sofrem de finitude mesmo quando fazem o bem. O leitor que passe a memória por santos, canonizados ou não, que percorreram belos caminhos de bondade. Lembro só dois ou três: S. Francisco de Assis, Madre Teresa, S. João de Deus; e não do mesmo círculo, Mahatma Gandhi, Nelson Mandela. Também podemos lembrar a rainha Santa Isabel que fez a paz na sua família. E são Nuno de Santa Maria (Nuno Alvares Pereira) que rezava antes das batalhas e que hoje temos dificuldade em entender.
Entendemos melhor quando ele deixou de as fazer e trocou tudo por Cristo, tornando-se um Carmelita pobre a dar esmola a pobres. Será que a oração e o silêncio nos intervalos das batalhas foi o dom de Deus para ele chegar a uma paz mais preciosa do que a conseguida com as vitórias da guerra? Penso que sem a fé em Deus, não há resposta para as fraquezas humanas, a finitude e o abismo do mal (cf.Anselmo Borges, in JN 17 Junho 2023) nem para a guerra.
No encontro do Papa Francisco com cerca de sete mil crianças de 84 países no Vaticano no dia 6 de novembro, uma criança ucraniana perguntou-lhe como se fazia a paz e o Papa respondeu que era uma pergunta difícil; mais fácil é dizer como se faz a guerra; e, após segundos em silêncio, indicou que era oferecendo as mãos abertas e o coração aos irmãos. Nelson Moda, da Comunidade de Sant’Egídio na Beira, Moçambique, fala do carisma de “diplomacia silenciosa” associada à “oração quotidiana para persuadir à paz”; falando menos delas, as ações são mais frutíferas, explicou. Jesus disse que nos deixava a sua paz; mas não como o mundo a dá, talvez porque o mundo a pretende dar com guerra. E a guerra trás perturbação, medo e horror (cf. Jo.14, 27).
Em relação a guerras e imposições de uns países sobre outros há uma história que me tem ocupado um pouco e me faz pensar. O caso de Timor-Leste. Como é que conseguiu a paz? Com pressões e negociações, claro. Mas não só. Não vou entrar em pormenores porque deixei a chave no livro “50 dias em Timor-Leste a desvendar o código da sua identidade” a lançar no próximo dia 23 nov., às 19h no Museu de Arte Sacra do Funchal.
Duas das maiores ilusões que estão na raiz das guerras grandes, entre países e blocos, e nas famílias, comunidades, grupos, partidos, é de que este mundo já pode ser o paraíso e que o homem o poderá construir sozinho, para substituir o paraíso da vida eterna depois da morte, prometido por Jesus. A outra ilusão é a de negar a finitude e imperfeição humanas e de não aceitar os dons de Deus no processo de santificação nesta vida, no tempo e no espaço, como preparação da perfetibilidade na visão da vida eterna após a nossa passagem para ela através do morrer. E, assim, viver na paz possível, aqui.
A preparação para o morrer, em que muitos, por medo, nem sequer desejam pensar, é isso mesmo, aceitar que viver é um processo de preparação para outro viver continuado que nos é prometido. Jesus promete-nos dois presentes por amor: ter paz Nele e passar por aflições com esperança e ânimo, a seu exemplo: «Eu venci o mundo» (Jo.16.33). É um facto, como diz S. Paulo que “a paz de Deus, excede todo o entendimento” (Fil. 4,6-7).
Quando se vive o tempo das inumeráveis ideologias fragmentadas; se endeusam todas as cabeças opinativas; se idolatram todas as celulazinhas de terror, grupos e grupinhos aterrorizadores que se intitulam de libertação e soberania esclavagista; quando se iguala a liberdade e a libertinagem, e se nivelam os grupos e seitas fanáticas extremistas com religiões organizadas para o bem comum, mais difícil é evitar as guerras.
Maravilhoso é que haja pessoas que aceitem ser chamadas a viver em paz como membros de um só corpo (Col. 3,15); e mais maravilhoso, é que esse corpo seja o corpo místico de Cristo que está para além de todo o entendimento dos que ainda vivem no tempo e espaço, de pesos e medidas científicas, em que “vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então,[além do tempo e do espaço] veremos face a face” (1Cor.13,12).
Funchal, 8 de novembro de 2023