Biblioteca Nacional do Chile
Em Santiago, o fato de ser brasileiro me granjeava certas vantagens. Para os chilenos, de um modo geral, argentinos, uruguaios, mexicanos, etcetera eram espécimes déjà vu da fauna latina, mas brasileiro era avis rara.
O conhecimento sobre o Brasil no mais das vezes não ia muito além da imagem do Rei Pelé.
Soma-se a isso o fato de um respeitado escritor chileno ter postulado ser Brasil o país pelo qual o Chile nutre a maior simpatia e os mais profundos laços de amizade.
Certa vez, andando pelas ruas com Jorge B., travamos contato com um funcionário da Universidad Católica, que ao saber da minha nacionalidade logo nos convidou para a sua casa. Anotamos o endereço e ficamos de ir lá, mas meia hora depois conhecemos um jovem vendedor de livros que pertencia ao Partido Socialista, ele também nos convidou, movido pela curiosidade, e acabamos indo passar uma semana na casa em que ele morava com sua bonita esposa, no bairro Macul. Foram dias lindos com eles, e quando Jano partia para o trabalho, nos deixava perto da Biblioteca Nacional, que passamos a frequentar diariamente.
Na Biblioteca – situada na Alameda, entre a igreja San Francisco e o Cerro Santa Lucia – li relatos de Juan Rulfo, também de Jack London, mas principalmente Mis Universidades e outros escritos de M. Gorki.
Jorge pelo seu lado, se concentrou na história do Chile, e trocávamos comentários sobre o que íamos lendo. Ele era alguns anos mais moço, e me impressionava pela agilidade mental, superior à minha nos domínios da literatura.
No interior da Biblioteca havia uma área circular vazia, que servia de passagem entre salas de leitura e possuía uma acústica muito especial. Era um espaço cilíndrico, com uma base de perímetro reduzido, mas abria para o alto atravessando todos os andares do velho edifício, e culminando numa cúpula abobadada transparente. Ali eu sentava no chão e tocava melodias lentas, e a forte ressonância multiplicava os sons das cordas, as notas mais agudas subiam e ricocheteavam na cúpula, para o deleite dos meus ouvidos. Era como uma mini-meditação, nos servia de prelúdio para as leituras.
Os antepassados de Jorge B. eram de uma família que tinha vindo para a Argentina no final do século XIX, oriundos de uma zona de língua alemã na região do rio Volga, na Rússia. Na Biblioteca ele me contou um caso curioso da história do Chile, que tinha acabado de ler.
Se trata de um companheiro alemão do conquistador Pedro de Valdívia, que castelhanizou seu nome (o sobrenome original era parecido com o do Jorge), se radicou no Chile, casou com uma princesa inca e deixou grande descendência, sendo uma bisneta dele muito famosa.
(Eu já tinha ouvido algo a respeito em Viña del Mar, onde me contaram que o nome da cidade se originou de um primeiro vinhedo, ali plantado por um alemão do exército de Pedro de Valdívia.)
O militar alemão se chamava Blum ou Blumenthal e, traduzido, passou a se chamar Flores. Teve uma filha com a princesa inca Elvira de Talagante, que se chamou Águeda Flores, em 1541.
Águeda herdou todas as numerosas propriedades do seu pai, se tornou uma latifundiária riquíssima, casou com Pedro Lisperg ( também um militar alemão) e tiveram numerosa prole. Além disso, Águeda, que viveu 91 anos, era versada na feitiçaria, e transmitiu seus conhecimentos à sua neta Catalina. E Catalina é a figura central dessa novela.
As numerosas lendas chilenas em torno de La Quintrala dizem respeito a essa mulher branca, alta, de cabelos vermelhos e olhos de um verde intenso, em cujas veias corria sangue inca, alemão e espanhol.
(Quintral é uma planta parasita de flores compridas e vermelhas, que os indígenas sempre usaram como planta medicinal.)
Na tradição popular La Quintrala foi uma mulher alta e belíssima, mas de natureza demoníaca e cruel e de vida dissoluta, que açoitava seus escravos e apunhalava seus amantes. Foi acusada de vários assassinatos, mas com sua riqueza sempre pôde evitar a prisão.