O Livro “50 dias Por Timor-Leste” é “uma fonte para ser citada nos estudos sobre Timor, referiu José Eduardo Franco numa recente entrevista. Livro singular, apresenta uma tese para explicar a razão de existir de um país que sobreviveu a muitas contrariedades e conflitos”
O novo livro do Pe. Aires Gameiro, intitulado “50 Dias por Timor-Leste. A desvendar o código da sua identidade” (nova edição aumentada), foi lançado recentemente no Funchal e teve a apresentação do Prof. José Eduardo Franco, da Universidade Aberta (UA).
A oportunidade serviu para registar um breve diálogo com o responsável da Cátedra de Estudos Globais da UA, em particular sobre a importância desta obra que relata aspetos históricos e atuais daquele território de língua oficial portuguesa.
– Prof. Eduardo Franco, como caracteriza o conteúdo deste livro – “50 dias Por Timor-Leste”? Como avalia a sua importância?
– É um livro muito interessante e singular porque apresenta, de facto, uma tese para explicar a razão porque um país que se pensava irrealizável e que sobreviveu a tantas contrariedades, conflitos, tentativas de dominação, conseguiu tornar-se independente. Nestas circunstâncias, o livro do P. Aires Gameiro oferece uma chave hermenêutica para se compreender o país, um dos mais novos do mundo, que passou por tantas dificuldades e vicissitudes, mas afirmou-se e continua a afirmar-se exemplarmente quanto à sua identidade.
Este livro é mais do que um livro de viagens, porque apresenta dados e factos da História de Timor, sobre a realidade atual, a evolução do processo que levou à independência no contexto da descolonização portuguesa, após a tentativa de integração por parte da Indonésia e que seria a 27.ª Província do Estado indonésio caso o povo timorense não demonstrasse uma grande resistência que o conduziu até à liberdade e independência.
É um livro estruturado em duas perspetivas interessantes. Há um binómio fundamental que explica, de acordo com o P. Aires Gameiro, o porquê de se tornar independente. Por um lado, o processo de missionação de que foi alvo e a configuração singular com o catolicismo; por outro, a construção de uma identidade peculiar, própria, do ser timorense que permitiu depois este processo de resistência e de afirmação de pleno direito. Tudo isto está bem explicado no livro. Não há dúvida que o processo de missionação levou ao desenvolvimento e à ligação com a cultura e as religiões locais, através da inculturação, e que conduziu a uma população especial, em que o catolicismo acabou por moldar a diversidade de tribos, reinos, que Timor então era, dando-lhe uma unidade que antes não tinha.
Além da configuração religiosa, destaca-se outro aspeto unificador, que é irmão gémeo desta dimensão, e que é a língua portuguesa. A importância da língua e o seu ensino garantiram também a unificação e a diversificação do povo timorense. Isto é muito interessante porque a verdade é que a língua portuguesa foi a irmã gémea da evangelização, da transmissão do cristianismo ao longo destes 500 anos. Timor acaba por ser esse espaço unitário de forma paradigmática. A língua portuguesa e o cristianismo dão essa identidade e essa distinção, força e identidade àquele povo mártir, como lembra o P. Aires Gameiro, mas que acaba por conquistar a sua independência e a sua liberdade; tornando-se, assim, numa espécie avançada do Extremo Oriente e um exemplo bem-sucedido do processo de evangelização. Por todas estas razões, é um livro que deverá ser citado como uma fonte em relação a estudos que se venham a fazer sobre Timor-Leste.
– A propósito do papel da religião cristã na construção da identidade timorense, o P. Aires Gameiro fala dos encontros que teve com José Ramos Horta, um dos mais destacados políticos de Timor-Leste, que chegou a vir ao Santuário de Fátima agradecer a proteção de Nossa Senhora no atentado que sofreu em Fevereiro de 2008…
– É muito significativo esse relato. As datas, os episódios, os relatos concretos: nada foi registado ou escrito por acaso. O próprio livro, aliás, tem uma coisa muito interessante, uma espécie de numerologia simbólica, todos os números ali são dados, significados de identidades religiosas e culturais, quer as datas em relação a acontecimentos marcantes quer, até, por exemplo, o próprio número de escadas ao monumento de Cristo Rei que tem a ver com a 27.ª Província que Timor era em relação à Indonésia, e assim por diante. O livro permite estabelecer essa relação e dar um condimento de reforço da representação identitária de um povo que na ligação com o cristianismo, com a língua portuguesa, com essa vontade de ser singular, diferente e livre, se afirmou profundamente em tantas situações. Na verdade, essa dimensão religiosa acaba por ser a chave da leitura fundamental que garantiu, de acordo com P. Aires Gameiro, a sobrevivência deste povo e a sua peculiaridade na autodeterminação.
– É de muito interesse conhecer este território que não está assim tão longínquo, distante, como se entendia no passado…
– Sim, há uma grande proximidade. A relação com Portugal, no contexto histórico da colonização, criou uma vivência afetiva, imaginária, ligou o extremo do Império – que se estendia do Minho até Timor e que, de certa forma, era a parte mais descurada por ficar muito distante geograficamente falando, era quase a ilha do desterro, distante, com pouco interesse económico, importância relativa. Mas, é certo que acabou por manter-se e afirmar-se, acabou até por dar o exemplo no século XXI da afirmação da liberdade.
– Este livro é um testemunho fundamental dessa afirmação?
– Sim, considero esta obra uma fonte para ser citada nos estudos sobre Timor. É um livro que é quase uma miscelânea, uma coletânea de várias perspetivas sobre Timor-Leste. A partir das suas viagens, documentando uma série de acontecimentos, o P. Aires Gameiro oferece dados à História para o que está também a acontecer atualmente e nas últimas décadas. Pode-se considerar um livro de viagens, mas que faz uma viagem por Timor, desde a História longínqua de há 500 anos, até à atualidade, numa construção da identidade, num processo de longa duração. É um livro de viagens com muitas viagens que nos faz viajar pela História de Timor, através de diversos aspetos, políticos, religiosos e culturais. Portanto, esta obra permite-nos fazer um ponto de situação sobre Timor, o que foi a sua História e a sua atualidade.
– No capítulo da globalização, Timor pode ser uma referência incontornável, a par de Macau e de Goa, como territórios orientais únicos, com marca portuguesa?
– Sim, Timor, Macau, Goa, são naturalmente pontos avançados ainda no nosso tempo como resultado desse esforço de nação, pelo envolvimento da língua, especialmente Timor que optou oficialmente pela expressão portuguesa e que, como disse, juntamente com a religião cristã criou uma singularidade num contexto difícil. Vamos ver agora se essa singularidade se mantém; os tempos são outros, mas é um facto que Timor deu um testemunho extraordinário, quase um milagre, perante décadas de martírio, com conquistas notáveis, políticas, religiosas que alimentaram a vontade do povo em continuar unido até à independência, afirmando-se como um património de resistência.