O vulcão Osorno é um dos mais bonitos do mundo
A vida na embaixada segue seu curso monótono e indefinido.
Hoje partiu a primeira leva, uns 150 refugiados, que devem voar num avião da força aérea argentina para Buenos Aires. Quando será a segunda leva ninguém sabe, nem o Encargado de Negócios. Nos primeiros dias havia a promessa de que todos receberiam asilo na Argentina. Agora não se fala mais nisso, suponho que é por causa das mudanças na política e talvez devido aos acontecimentos turbulentos que estão ocorrendo por lá.
Pela tarde assisti algo dramático, que já ocorreu várias vezes, mas eu nunca tinha presenciado.
Desci para o jardim, onde já não havia mais muita gente. Mas perto do muro dos fundos estavam quatro refugiados chilenos, de pé e em círculo, cada um segurando uma ponta de um cobertor. Me aproximei, meio que adivinhando o lance. Dali a pouco a cabeça de um homem assoma sobre o muro, do outro lado. E logo depois o homem ascende um pouco mais, se curva para o lado e para baixo sumindo, e ao reaparecer traz um bebê nas mãos empalmadas, suspenso no ar. Ele se inclina para dentro do jardim, enquanto embaixo os que seguram o cobertor ajustam a posição. Então o homem solta o bebê, que desce em queda livre e ao aterrisar no cobertor, quebra o silêncio com seu choro. Em seguida é uma mulher que vem e pula o muro, sem precisar de ajuda. Por último o homem também pula, e a família está reunida, a salvo, todos batemos palmas.
Que façanha!
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Na parada de Temuco, nós descemos do trem e saímos a perambular pelas imediações, se misturando com as pessoas. Por todo lado havia indígenas mapuches vendendo seus trabalhos de artesania, brincos, colares, pulseiras e coisas de pendurar em forma de pássaros e animais, além de objetos com figuras misteriosas, que talvez sejam símbolos ancestrais desse povo, em cobre e prata. Por ali escutamos alguns indígenas conversando na sua língua mapudungun, ininteligível para nós. Chegamos numa pequena mostra de artesania, e olhando os trabalhos expostos, em metal, terracota e outros materiais, Jorge entabulou conversa com o dono de um estande. Quando me aproximei, eles estavam falando sobre o MIR, partido político do qual Jorge é simpatizante. O artesão se chama Robin, é de Santiago e é militante do MIR. Andava pelo sul, expondo e vendendo seus trabalhos, principalmente em cerâmica. Robin vive de artesania e tem uma casa em Recoleta, perto do cemitério geral. Em dois dias ele ia partir para Valdívia, para tomar parte num grande festival, com exposições de artesania, música, poesia e muita festa, nos contou.
Aí começou a chover e por ali não havia onde se abrigar. Nos despedimos de Robin e caminhamos para uma praça, onde havia um coreto no meio. A chuva foi aumentando e tamborilando no telhado do coreto, enquanto a gente se acomodava no piso de madeira, com o propósito de tirar uma soneca.
Quando acordei a chuva continuava, porém mais fraca. Jorge estava lendo um livro de contos de Rozenmacher, escritor argentino que morreu envenenado por um escapamento de gás em Mar del Plata, me contou. Pus-me a tocar violão, lapidando uma canção nova que fala da chuva.
Chuva cai, e parece me dizer
No amor, nunca dá para saber
Se ele vem, e é pra ficar
Se ele vai, e ficamos com o olhar
Muito longe, procurando o que já não há
E cá dentro, a chuva cai…
Nisso estávamos, e a chuva foi cessando, quando apareceram dois chilenos, nos falaram que também haviam andado de mochila, traziam coisas de comer e queriam conversar. Ficamos de papo com eles várias horas. Um deles, Renan, contou uma história incrível, que talvez seja pura cascata.
Ele falou que tem descendência francesa, mapuche e criolla. Que seu avô era filho de um francês, que era jurista, de nome Tulán, coisa assim. Esse bisavô dele se relacionou com vários loncos (chefes de comunidades mapuches) e se proclamou rei da Araucania e de regiões do sul argentino, que na época (por volta de 1860) estavam despovoadas.
A longa Guerra do Arauco – durante a qual os indígenas conseguiram impedir que os espanhóis e depois os chilenos conquistassem as regiões ao sul do rio Bio-Bio – vivia seus derradeiros momentos, e foi quando reinou o bisavô francês do Renan, que se vestia como mapuche. Reinou por dois anos, mas aí o exército chileno conseguiu desbaratar as últimas resistências indígenas e o rei Tulán foi preso e expulso do país, deixando para trás a bisavó mapuche de Renan, grávida de poucos meses.
Depois, a noite caiu e voltamos para os trens.
Às quatro da madrugada, partíamos de novo, instalados dessa vez sobre uma carga de carvão de pedra.
Duas chuvas caíam, uma de água e outra de fuligem. Mas aguentamos bem, até Osorno.
A meio caminho, de repente se fez um estranho silêncio e senti que estávamos indo para trás… Isso durou uns dez minutos, até que a velocidade foi diminuindo e o trem parou por completo. Ou seja, a parte com os vagões traseiros do comboio, que se havia soltado numa subida, rodou para trás e parou num descampado.
E ali ficamos sobre os carvões, sem saber o que fazer. E sem saber se o caso era para rir ou chorar.
Mas por pouco tempo, logo se fez ouvir o barulho da locomotiva se aproximando, em marcha ré.
Ela encostou, engataram novamente os vagões separatistas e seguimos viagem.