O futebol continua sendo protagonista em terras brasileiras, a despeito de nossos fracassos em competições internacionais. Tudo gira em torno dos mega patrocínios, cotas de televisão e contratos tão milionários quanto as dívidas da maioria dos clubes. Os dirigentes reclamam da situação financeira, do legado que herdaram, mas seguem gastando por conta de projeções, como a venda de jogadores.
A coisa funciona mais ou menos assim: desenvolvemos novos valores, garimpando um ou outro diamante, que será vendido para um grande clube europeu antes de completar vinte anos. Antes dos dezoito, por vezes. O resultado da venda será utilizado para mitigar as dívidas, custear despesas e remunerar muitos pernas-de-pau e alguns ex-jogadores. Que um dia correram em campos estrangeiros e ainda são melhores que aqueles que permaneceram aqui.
Muito mal comparando, este mecanismo melancólico relembra a história do Brasil. Pródigo em recursos de quase toda a natureza, sempre assistimos o embarque deles para plagas outras. Da madeira ao ouro. Do século XVI, quando os índios foram facilmente dominados pelo pau-de-fogo, ao século XXI, no qual os brasileiros seguem a confessar, sem pudor, sua incapacidade de colocar o Brasil dentre os protagonistas. As explicações são múltiplas, desde o complexo de vira-lata à alta traição de muita gente nos três poderes da república, que de res publica tem pouco.
Há muito que o segundo esporte nacional é avacalhar nosso passado. Até porque isto torna mais fácil explicar nosso fracasso. O Brasil é cartorial? Herança portuguesa. Ahh se houvéssemos sido colonizados pelos holandeses, que daqui rumaram para Nova Iorque …
Seria bom que tais admiradores dos neerlandeses lembrassem que estes atacaram Angola para garantir o suprimento de escravos para as lavouras de Pernambuco. Também não lhes faria mal recordar que os boeres eram colonizadores neerlandeses na África do Sul …
Quando recordamos os parentes e amigos que se foram, vez ou outra comentamos algum aspecto negativo de suas personalidades, mas normalmente exalçamos suas qualidades, que de longe superaram seus defeitos. Por que procedemos desta forma? Por caridade com os que se foram, mas também como saudável autoproteção, afinal se procedemos de uma gente ruim, que tipo de gente somos nós mesmos?
Caminhava pelas ruas da cidade e do nada me meio à cabeça a lembrança de uma bomba de nêutrons, a arma que mata seres vivos por radiação, mas não destrói prédios e demais coisas. Enquanto via as pessoas em movimento, imaginei que em cem anos nenhuma delas terá sobrevivido, mas muitas edificações provavelmente resistirão. O tempo, portanto, é metáfora de uma bomba de nêutrons.
O que o tempo deixa, a testemunhar nossa ancestralidade, são cartas, livros, diários, jornais e todos os demais registros que nos permitem viajar pelo passado. Bons historiadores, aqueles que buscam beber das fontes e policiam seus próprios vieses, podem produzir boas obras, como D.Leopoldina, de Paulo Rezzutti, que li com deleite.
Sobrinha-neta de Maria Antonieta e irmã da segunda esposa de Napoleão, Leopoldina era uma Habsburgo e, como arquiduquesa, foi criada de maneira refinada. Quase dois anos mais velha que Pedro I, casou com ele por procuração, em Viena. Depois despediu-se dos seus e disse adeus à Europa em Livorno. Embarcada no vaso de guerra D.João VI, modificado para a viagem da agora princesa portuguesa, chegaria no Rio de Janeiro quase três meses depois: “eram novecentas pessoas a bordo, muitas das quais dormiam sob uma enorme tenda armada no convés. Além de vacas, bezerros, ovelhas, patos e quatro mil galinhas, havia ainda dezenas de pássaros para entreter as pessoas a bordo”.
A descrição de sua chegada no Brasil é comovente. A recepção calorosa, na cidade enfeitada com as cores de Portugal e da Áustria, passados quase dez anos da vinda da família real portuguesa, precedeu a subsequente leitura dos personagens pela culta Leopoldina. A sogra não merecerá elogios de sua parte, Pedro a magoará muitas vezes ao longo dos nove anos da união, até sua morte, mas D.João VI mereceu dela referências sempre elogiosas, a ponto de considerá-lo um segundo pai.
A versão comumente difundida de D.João VI como um nobre hesitante, medroso, um porcalhão que vivia com coxinhas de frango nos bolsos, é sob medida para o delírio dos que avacalham nosso passado. Habilidoso, com astúcia diplomática, D.João VI salvou a dinastia Bragança quando os ventos da revolução francesa ainda faziam estragos.
Pesquisadores, como Lucia Bastos, têm aprofundado seus estudos, colaborando para a leitura não enviesada da história (https://agendabonifacio.com.br/entrevistas/apesar-da-imagem-de-rei-inseguro-d-joao-vi-enganou-napoleao-e-manteve-a-dinastia-de-braganca-ao-trazer-a-familia-real-para-o-brasil-agindo-como-um-estadista-diz-a-historiadora-lucia-bastos/).
São contribuições como esta que nos permitem recuperar nossa autoimagem, afinal se Pedro I deixou a desejar, proclamou nossa independência, com a participação decisiva de Leopoldina e de José Bonifácio.
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Portugal manteve o Brasil isolado até 1808, quando D.João VI e sua corte aqui pisaram. A intenção era proteger as riquezas do país. Para proveito de Portugal? Por óbvio.
Decorridos dois séculos, como andam as coisas? A deputada Silvia Waiãpi manifestou-se de forma contundente contra organizações internacionais que, segundo ela, querem manter os indígenas na mesma condição de 1500. Sugere que tal quadro preserva a fragilidade extremamente propícia para uma nova invasão, desta feita não de portugueses. Tudo feito em nome da “defesa da ancestralidade”. Não apenas concordo com a deputada. A aplaudo.
Volta e meia escutamos a exaltação dos treinamentos militares na selva amazônica. Boa dose de ufanismo nos fez crer que uma invasão estrangeira será repelida. Isto até pode ser verdade para uma agressão de um de nossos vizinhos, mas é falso se o invasor for uma super potência. Como é improvável a agressão de um país lindeiro, o mito de defesa na selva parece inócuo. E vicejou em plena expansão de ONGs de todo o tipo. E de interferência de organizações internacionais muito poderosas, a ditar o que podemos ou não fazer em nosso próprio chão. Com o mote do clima, foram garroteando nossa independência.
Seguimos como um país sem planejamento, com larápios em muitos postos públicos e traidores vazando pelo ladrão. A guerra não veio pelas fronteiras terrestre e marítima, nem pelo espaço aéreo. Veio pela diplomacia, pela propaganda, pelas concessões inaceitáveis. E estamos perdendo.
Quem esteve na gávea não entendeu o que se passava. Ou fechou os olhos.