Na Capela do Rato, espaço dileto da cidade de Lisboa, continuamos a assistir às Conversas de Maria João Avillez: “E Deus em nós?”, …é o que me proponho perguntar a algumas pessoas … ouvindo o seu testemunho de vida na cidade contemporânea”.
Na terceira conversa esteve presente a música. Com Martim Sousa Tavares, falou-se de música e de músicos, de orquestras, de democratizar a música, de criatividade e da música ligada ao sagrado.
Quem é Martim Sousa Tavares? Sabemos que tem 32 anos e já um percurso rico e multifacetado: é um músico de grande talento, é maestro – fundou e dirigiu a orquestra Di Maggio em Brescia, onde estudava. Atualmente dirige duas orquestras, a do Algarve e a Orquestra sem Fronteiras em Idanha-a-Nova, é compositor, escreve artigos sobre música e pertence ao Conselho editorial da revista Brotéria.
Numa conversa vertiginosa “assistimos” à atribulada formação da orquestra de jovens alunos do conservatório em Brescia, à alegria, às esperanças, ao sucesso dos seus concertos em Florença e em Colónia, mas, também, ao seu final: “quando eu decidi ir para os Estados Unidos a orquestra não podia continuar … fizemos um jantar de despedida e houve muitas lágrimas”. De volta a Portugal, forma a Orquestra sem Fronteiras “se eu tivesse que fazê-la de novo já não seria capaz … nós congregamos todos os jovens que estudam nos conservatórios, nas escolas profissionais, no ensino superior do interior do país, mas também do lado espanhol. A ideia é que eles perseverem que eles não desistam, estamos no interior, queremos tocar no maior número de sítios possível, sobretudo naqueles lugares onde uma orquestra nunca foi vista, nem imaginada, nós temos um conceito que se chama orquestra de bolso que é uma orquestra mais pequenina … porque tem que caber na Igreja Matriz, tem que caber na casa do povo, no salão paroquial, numa IPSS, já tocamos em todos os sítios.”
A orquestra do Algarve é um projeto diferente. Muito interessante é a presença quase indispensável da música contemporânea nos seus programas “eu sinto-me confortável nas periferias, eu posso fazer com aquela música muito mais do que posso fazer com Mozart … é muito mais gratificante descobrir, não ter de caminhar sobre caminhos já feitos, outros já o fizeram muito melhor do que eu, a música que é feita hoje tem o valor da descoberta … interessa-me essa voz e acho que é necessário que alguém a defenda porque senão música clássica vai-se transformar numa vitrine de museu.” Finalmente surge a escrita, como?
Porquê a Revista Brotéria? “estamos ali uma quantidade de vozes novas que fazem sentido para a visão da Brotéria que é mantida por um corpo de jesuítas mas também por pessoas que não estão ligadas à religião, que trabalham na área da gestão cultural … a atitude das pessoas é tão natural … e eu sinto o mesmo com a música clássica … que deve ser simples, acessível, quotidiana, deve ser para todos e eu acho que me revi nessa forma de estar … eu achava que fazia sentido haver um texto sobre música já que havia textos sobre todas as artes, a minha proposta foi aceite … depois, pediram-me outro texto e depois outro”. E vai haver mais escrita, “estou a escrever um livro sobre aquilo que eu acho que é uma forma humanista de estar na vida enriquecida por todas as artes, … são ensaios com um fio condutor que parte da minha própria experiência … é sempre o meu ponto de observação sobre as coisas e aquilo que eu fui descobrindo”.
Há, certamente algo mais em tantos projetos, várias abordagens, enorme criatividade. “Que momentos foram decisivos … que lhe provaram que estava no caminho que queria?” “Sinto que, se calhar, o mais importante foram até os enganos ou os momentos em que eu senti que não estava no sítio certo … aconteceu eu inscrever-me no curso errado … ciências da comunicação, eu sentia-me a definhar ali dentro, com cadeiras fascinantes, mas que não me levavam a lado nenhum … muitos anos mais tarde, já depois de duas licenciaturas em música, nos Estados Unidos, tomei uma decisão também radical que foi regressar a Portugal para em Idanha-a-Nova criar uma orquestra … decidi voltar para fazer este projeto e a razão disso ter acontecido foi eu sentir que eu não era um cavalo de corrida num meio altamente competitivo (em Chicago) em que eu não era insubstituível a fazer aquilo que estava a fazer e isso provocou me uma certa crise … comecei a fazer aquilo que em inglês se diz soul-searching, pesquisar na minha alma, e cheguei à conclusão que em Idanha-a-Nova eu ia ser insubstituível.
Portugal é um país de enormes assimetrias e desigualdades de oportunidades … decidi criar este projeto numa terrinha chamada Idanha- a- Nova … é uma cidade que está na rede para a música das cidades criativas da UNESCO. Portanto, sentir, uma vez mais, que aquele lugar não era meu acabou por me conduzir a uma certeza maior.
A conversa está a chegar ao ponto crucial “e Deus em nós?” é o tema das Conversas: “Você fez brilhar o que estudou, tem projetos educativos, leva a música onde ela não está… essa intenção de agir assim resulta da responsabilidade que você acha que tem pelos dons recebidos … há uma responsabilidade extra nisso, há uma outra responsabilidade?”
“Eu faço muita coisa e sei que faço de forma digna, mas também sei que não sou o melhor em nada daquilo que faço … eu sinto que há uma quase predestinação de eu ter de cumprir certas coisas porque senão não vem ninguém fazê-las ou vai demorar muito tempo até que alguém o faça …eu sinto que há uma missão, não sei se foi uma mochila que eu pus às minhas costas ou se ela apareceu sozinha … e sei que é tão importante aquilo que eu venho fazer … sinto que trabalho muito mais do que gostaria, mas trabalho por um sentido de responsabilidade … se calhar, com uma paternidade, um pessoa quando tem um filho também não dorme as horas todas que quer, não tem a vida social que queria, mas há um valor mais alto que se impõe que é criar aquela criança e eu sinto isso.”
O ambiente familiar, as memórias, a formação e sobretudo os sacramentos, que papel tiveram? “Você é batizado, fez a catequese na escola, fez a primeira comunhão, mas depois afastou-se … não teve nenhuma prática religiosa…, mas, ainda se lembra quando a sua avó materna lhe contava histórias da bíblia e que você se encantava. O que restou disso?”
“Eu acho que não me afastei porque nunca estive verdadeiramente lá… eu fui batizado sem ter pedido para ser batizado, fiz primeira comunhão, mas acabei por mais tarde eu próprio me interessar … sobretudo o novo testamento, já li e reli … interessa-me a bondade e a sabedoria onde quer que ela esteja e muita passa por aqui, não tenho a parte confessional e da fé.”
“Mas sendo músico, convivendo com o sublime, com o deslumbramento que é a música…que nome dá a essa a essa noção de transcendência?” “O inefável! … a música…são sons que não têm um significado verbal, embora haja uma sintaxe das ideias … esta característica inefável que a música tem é o facto de não a conseguimos descrever com palavras, se conseguíssemos descrever não era música, era prazer era qualquer outra coisa. A música é uma porta aberta para a emoção em estado puro.” Pode-se aí encontrar Deus? “sim, também se pode encontrar Deus …, mas, para mim, o mistério é quando sentimos essa mão de Deus, essa beleza inexplicável que não pode ter vindo de um ser humano finito, mortal e, no entanto, por vezes essa música é produzida por pessoas que sabemos que eram crápulas, pessoas detestáveis, execráveis.” Sim, é verdadeiramente um mistério assustador, mas talvez seja justamente por aí que o Martim chegue à busca do divino: “eu estou à espera do meu incidente na estrada para Damasco porque as portas estão abertas, eu tenho contacto regular, íntimo, próximo, solitário, profundo com belezas sem fim, portanto inexplicáveis, estou em contacto com esse absurdo da beleza, mas, lá está, nunca caí do cavalo até hoje. No dia em que cair, cá estarei para abrir os olhos e olhar diretamente para a luz, mas ainda não aconteceu …não vêm de um lugar de recusa!” Que assombro!
E como conclusão as palavras encorajadoras do Pe. António Martins o Capelão: “Martim … desejo-lhe uma feliz queda do cavalo … atrevo-me a dizer, isto é hermenêutica minha, que está mais perto da queda do que o próprio São Paulo. Ele ia com o coração cheio de ódio e de agressividade, pronto a matar, creio que não será o seu caso!” E ouviu-se uma enorme ovação do público, na Capela Do Rato.