Ao chegar em Osorno o trem passou por uns terrenos tomados pelo MIR, várias bandeiras miristas tremulavam ao vento. Jorge fez questão de ir lá conhecer como funciona uma toma de terras. Mas antes foi machetear comida no mercado perto da estação de trens, conseguiu arroz, tomates, cebolas e alhos. E um melão que traçamos no ato.
Caminhamos pela estrada de terra e chegando na toma, ultrapassamos uma cerca escangalhada, andamos de um lado a outro, mas não encontramos ninguém por lá. Se via que eram terras de cultivo, porém entregues ao abandono. Aqui e ali restos de pés de milho faziam companhia aos paus fincados no chão, com as bandeiras do partido revolucionário.
Voltando para a cidade, descemos por um barranco à nossa direita, atraídos por umas pêras que pareciam maduras. E nos deparamos com uma paisagem idílica, que da estrada não dava para ver. Era um campo muito verde pintalgado de ervas e flores, limitado à direita por um bosque tupido. E nas praias escuras do arroio que corria pela esquerda, gaivotas, muitas gaivotas gemiam friorentas e muito brancas, enquanto a tarde morria. E ali havia várias pereiras, macieiras, muita amora silvestre…
Fiz um fogo, com paus secos que catei no bosque. E cozinhamos uma sopa com arroz e legumes, na lata de conservas que serve de panela. Depois de comer, Jorge nem quis conversa, se enfiou no saco e dormiu. Mas eu troquei meu saco de dormir por dois cobertores, tempos atrás. Dois cobertores é pouco para o frio do sul do Chile, sou obrigado a catar lenha suficiente para aquecer meu sono.
Adormeci repassando certos detalhes da viagem no comboio de carga, que não queria esquecer.
Lá pelas tantas se fizeram ouvir alguns ruídos estranhos, e comecei a sonhar.
Estava no interior de uma ruka, e uma mulher mapuche de longos cabelos negros socava milho para uma comida, em um grande pilão. Ela erguia o socador com as duas mãos e ao descer, o embate no pilão fazia o chão tremer e soava como se fosse ao lado do meu ouvido. Uma batida ainda mais forte me fez despertar.
E a luz da lua cheia explicou meu sonho…
Por toda parte ao redor um rebanho pastava, nas sombras.
E o barulho do pilão eram os coices dos bois na terra… Ao meu lado…
Quando o dia clareou os ruminantes já se haviam ido, junto com a bruma que cobria o campo.
Fazia um frio danado, o que me obrigou a levantar muito cedo. E correr e subir e baixar barranco, para aquecer o corpo. Fiz um fogo, pus água a ferver e fui apanhar pêras, maçãs e amoras, enquanto Jorge continuava ferrado no sono.
Na nossa divisão do trabalho, Jorge, com sua cara de menino desamparado, é o mestre imbatível em mendigar suprimentos. Mas na hora de preparar as comidas é comigo, ele não sabe cozinhar.
Ouvindo um trem apitar, levantamos acampamento.
Entrando na cidade, algumas pessoas nos saudavam com as rotineiras gracinhas e insultinhos sobre os cabelos compridos, coisa e tal. O sol brilhava com força – coisa rara naquelas paragens -, espalhando um calor reconfortante, e decidimos nos abancar numa pracinha. E ali estávamos, eu no violão e o Jorge lendo, como de costume, quando nos aparece um bando de hippies. Sentaram no chão, ficaram ouvindo a música e depois nos convidaram a ficar com eles. Estavam acampados em um parque com grandes árvores, de copas amplas e acolhedoras. Com um arroio que passa cantando debaixo de uma pontezinha de madeira, deve ser o mesmo das gaivotas. Parque 4° Centenário.
(Osorno foi fundada pelo conquistador Pedro de Valdívia no século XVI, mas foi logo destruída pelos indígenas. Os caciques dominaram na região e repeliram os espanhóis, por mais de duzentos anos. Até o final do século XVIII, quando os espanhóis refundaram a cidade com base nas ruínas das antigas edificações.)
Algumas garotas da cidade vêm pololear com os hippies, trazem comida para eles. Um deles é colombiano e negro, falou que tem 17 anos. Se chama Gerardo e com frequência faz-se passar por brasileiro, me contou rindo muito. Ele canta a marchinha “Cachaça não é água não”, num portunhol que conseguiu burilar bastante bem.
Quando anoiteceu nos dirigimos à linha férrea, para dormir por lá. A meio caminho um homem nos abordou e convidou para ir à sua casa. Ele morava com sua mulher, sem filhos, ambos teriam cerca de trinta anos. Passamos a noite na casa deles, nos trataram bem, mas de um modo meio estranho… Pela manhã nos acordaram dizendo que tínhamos de sair logo dali, porque tinham coisas urgentes a resolver. Partimos, mas depois de andar alguns metros a intuição me fez parar e revisar a mochila. Dentro dela estava tudo revirado, rebuscado. E não estava a câmera fotográfica que comprei na zona franca de Manaus… Dei meia-volta e fui bater na porta dos nossos anfitriões ladrões. O homem abriu a porta, e antes que ele dissesse qualquer coisa eu despejei fogo: – Dame mi cámara. Si no me la da, de aqui me voy directo a la Policia, lo voy a acusar de robo. Usted se va a ganar un gran problema! – falei, olhando o cara fixo nos olhos.
Em pouco o olhar do sujeito se desmanchou, ganhou um ar angustiado. Sem nada dizer, ele me deu as costas e foi lá dentro falar com a mulher. Pouco depois ele voltou e me entregou a câmera, dizendo que tudo tinha sido ideia dela…
E seguimos para a linha férrea, nos instalamos por lá, enquanto o sol abria caminho com dificuldade, entre as nuvens grossas e escuras. Quando chegou a noite, fomos dormir no galpão do vigia da estação, onde um grande fogão alimentado com carvão de pedra espalhava um calor amigo e adormecedor. Na manhã seguinte partimos em um trem de carga, uma carga de grandes rolos de arame. Muito legal, porque me enfiei dentro de um rolo desses (havia espaço) e a chuva que caía não me tocava. Mas quando o trem parou em Frutillar, nos intimaram a descer. Aí, quando estava por ali, cozinhando um resto de arroz, apareceu um sujeito pedindo pra eu tocar algo. Toquei algumas canções nossas e “Yo vendo unos ojos negros”, chilena. O cara gostou e fui buscar carne para acrescentar ao arroz. E nos convidou a passar a noite numa sala abrigada da estação de trens. Mas antes teve muito vinho, cantorias e conversas sobre a situação política.
E tivemos uma amostra de como os trabalhadores estão confiantes, agrupados em torno à Unidad Popular e Allende.