Primeira obra dramática de Sartre realizada num campo de concentração nazi, teve como tema central o mistério do Natal.
Na Segunda Guerra Mundial, estando Sartre como meteorologista, ao serviço do exército francês, foi feito prisioneiro pelos alemães, em Nancy.
Em Dezembro de 1940, pelo Natal, no campo de prisioneiros nazi Stalag 12D, em Tréveris, na Alemanha, foi representada nos dias 24, 25 e 26 de Dezembro, “Barioná, o Filho do Trovão”, a primeira peça de teatro escrita e ensaiada por Jean Paul Sartre, tendo sido presenciada por cerca de seis mil prisioneiros.
Os capelães franceses deste campo receberam, em Novembro, permissão dos comandantes alemães para celebrarem a Missa da Meia-Noite de Natal.
Um dos prisioneiros propôs que, além da Missa e de um concerto, na noite de 24 de Dezembro, fosse apresentada uma peça alusiva ao Natal.
Esse prisioneiro era o filósofo Jean-Paul Sartre, que quis contribuir para a celebração e se ofereceu para compor e encenar uma peça sobre o Natal. Tinha 35 anos, já havia publicado Náusea, escrevia o “SER e o NADA”, era ateu assumido, organizava cursos sobre Heidegger e o existencialismo, para os seus companheiros de cativeiro.
Jean-Paul Sartre preparou “Barioná, o Filho do Trovão” em seis semanas: escreveu uma história de grande profundidade teológica, distribuiu os papéis, dirigiu os ensaios, coordenou a encenação, supervisionou os figurinos e cenários, escolheu algumas canções natalícias para as cenas finais e tudo estava pronto para a meia-noite de 24 de Dezembro. Ele próprio interpretou uma das personagens principais, Balthazar.
A peça é uma alusão ao Natal. Está situado em Bethaur, uma aldeia a poucos quilómetros de Belém, uma terra abandonada e decadente, de onde os jovens partiram e quase nenhuma criança nasce. Como se não bastasse os Romanos tinham decidido aumentar os impostos, e o chefe da aldeia, Barioná, exorta os seus concidadãos a ripostar deixando de fazer filhos.
Baryoná é o líder dos judeus de Bethzur, odeia os romanos e é céptico sobre a história de pastores que afirmam que um anjo lhes anunciou o nascimento do Messias num estábulo próximo.
Mas, a sua mulher Sara informa-o que está grávida, exactamente no mesmo dia, em que da aldeia vizinha de Belém chega a notícia do Nascimento de um outro recém-nascido, “enfaixado e deitado num presépio”, que os Magos e os feiticeiros creditados, anunciam como sendo o Messias.
Barioná inicialmente pensou matar o recém-nascido, cujo futuro, crucificação e ressurreição foram vaticinados pelo feiticeiro da aldeia. Mas, depois de reflectir, Barioná decide proteger a criança, Maria e José seus pais, até que conseguissem fugir, mesmo colocando em risco a sua própria vida.
Ao despedir-se da sua esposa Sara, numa derradeira cena comovente, também lhe diz que mudou de opinião quanto a eles e que, por conseguinte, quer que ela dê à luz o seu filho e que lhe diga, à hora da nascença, que o seu pai morreu na alegria!
Com emoção e um estilo cheio de luzes poéticas, Sartre articula um conflito dramático que gira em torno da decisão mais radical a que a liberdade humana pode aspirar: aceitar a esperança ou rejeitá-la.
Nesta obra – e somente nesta, até onde sabemos – Sartre argumentará que a liberdade humana, a capacidade de realizar nosso projecto de vida, só faz sentido sob a esperança, que por sua vez adquire o seu fundamento na encarnação de Deus; no Nascimento de Cristo.
A ternura com que o autor descreve o presépio é tocante, na forma maravilha, cheia de reverência e de amor com que Maria e José contemplam o Menino, um “Deus muito pequeno que se pode segurar nos braços e cobrir com beijos”.
Várias centenas de prisioneiros que assistiram à apresentação de Baryona, naquele quartel do campo de concentração, converteram-se ao cristianismo, e muitos outros nunca esqueceram as palavras com que Sartre descreveu o sofrimento e a grandeza da redenção.
Balthazar, pacientemente, explica que Deus desceu à terra por eles, que quis levar a cabo esta loucura mesmo que lhe seja difícil acreditar, que por isso qualquer homem já é muito mais do que aspirava ser, e que o nascimento de Jesus é uma causa de esperança e dá ao sofrimento o seu verdadeiro significado.
“Para quem esperar, tudo será sorriso e o mundo lhe será dado de presente”, diz.
No final do libreto todos os moradores da região reuniam-se alegremente em Belém.
“Descobrirás”, insiste Baltasar, “aquela verdade que Cristo vos veio ensinar à terra: que não sois o vosso sofrimento. O que quer que façais, e por muito que enfrenteis o desespero, o Homem supera-se infinitamente”.
Tudo o que está além do seu sofrimento e das preocupações, ou seja, o mundo inteiro é um presente gratuito em perpetuidade.
Uma obra de um prisioneiro, realizada por prisioneiros e para prisioneiros, plena de fé, de esperança e de caridade como uma esponja imbuída do Evangelho, Sartre chamou-lhe Barioná, o jogo da dor e da esperança, e vários teólogos a descreveram como um dos relatos mais preciosos e comoventes do nascimento de Cristo. Sendo o seu autor ateu, anticristão e defensor do niilismo é um curioso paradoxo – ou, talvez, um mistério.
Sobre a peça, escreveu o próprio Sartre, em 31 de Outubro de 1962: “O facto de me ter debruçado sobre o tema da mitologia do cristianismo não significa que a direcção do meu pensamento tenha mudado nem sequer por um instante durante o cativeiro. Tratava-se simplesmente, de acordo com os sacerdotes prisioneiros, de encontrar um tema que pudesse tornar realidade, nessa noite de Natal, a união mais ampla possível entre cristãos e não crentes.”
Segundo o testemunho do Padre Marius Perrin, companheiro de Sartre no cativeiro: “Depois de Barioná, tudo mudou. Foi como se Sartre tivesse introduzido um ‘vírus’. Foi como se, graças a ele, ‘um longo período de incubação’, em que estivemos impedidos de nos revoltar, tivesse finalmente chegado ao fim”.
Não deixa de ser curioso que a primeira peça do filósofo existencialista francês tenha o Natal como tema central.
A liberdade humana, cerne da filosofia de Sartre, está presente nela, tal como a ternura, a rebeldia, a redenção, a vida e a morte.
Será que o Homem está mesmo condenado à liberdade?