Choveu todos os dias em Puerto Montt. Casas de madeira antigas, algumas enormes e sombrias. O pio das gaivotas na névoa, sobre o escuro do frio oceano. Ao descer do trem, fomos ao mercado e ganhamos cholgas, almejas e outros mariscos. Aí nos juntamos com alguns linyeras à beira dos trilhos e preparamos um cozido de mariscos com legumes, comi a ponto de estourar. Os outros dias, foram cinco, comíamos quando nós convidavam.
Uma noite fui a uma taverna com um senhor que estava sempre curado, e era um personagem folclórico em Puerto Montt. Ele já tinha me chamado a atenção antes, andando pelas ruas no seu passo claudicante de amigo do trago, que bebe sempre mas nunca a ponto de cair ou perder a consciência. E cantando sempre a mesma canção:
Canta viajero errante, cantos de tu niñez
Ya que nunca tu patria volverás a ver…
Hungria de mis amores, tierra querida
Llenan de luz tus canciones mi triste vida…
Vida de inquieto y eterno andar…
Me aproximei dele naquele fim de tarde e ofereci acompanhar seu canto no violão, toquei alguns compassos da melodia para animá-lo. Ele ficou me olhando com seus olhos aquosos, imóvel e em silêncio, longos momentos.
– Aqui no, vámonos a mi casa – ele então propôs.
Chegando lá, uma moça bonita que devia ser sua neta, quando nos viu foi logo soltando os cachorros. Que era uma pouca vergonha, que ele sabia que não podia trazer para casa seus amigos de bebedeira, coisa e tal. Eu fui saindo de fininho, e ao passar o portão ouvi a voz tremida do senhor Villegas: – Espérame afuera, ahorita vengo.
Pouco depois ele saía, vestindo um agasalho em melhor estado e portando um guarda-chuva, que ia apontando para mostrar o caminho. E andamos pelas ruas já escuras, nos aproximando do mar, até chegar na frente de um vetusto casarão de madeira de vários pisos, no alto da porta havia uma tabuleta com um nome desgastado e ilegível.
Ali era o hotel Alma de Dios, do A. Pagel, velho amigo do senhor Villegas, ali fomos recebidos efusivamente.
Os dois velhinhos tinham sido companheiros na marinha mercante, navegaram juntos, foram até a Índia e a China, entre outros lugares. Ao longo da noite e dos copos de vinho, foram recordando momentos dramáticos das viagens, em que geralmente passavam do Pacífico para o Atlântico pelo Estreito de Magalhães. Ou pelo Canal de Beagle, onde segundo o velho Pagel ocorreram mais naufrágios que em qualquer outro lugar do mundo. Contaram histórias dos tempos das grandes guerras, no meio de combates navais. E dos últimos índios que viviam em canoas e andavam seminus, apesar do frio antártico. A cada tanto interrompiam os relatos e me pediam para tocar algo, especialmente o Pagel, que é o mais velho dos dois. E foi comandante, Villegas tinha um posto inferior, o que dava para perceber no jeito de falar de cada um.
Eu tenho uma luz interior, que quase sempre me permite deter um porre antes das últimas e piores consequências. Quando ela acendeu, me vi ali naquela taverna de hotel, a poucos metros do oceano imenso. Na noite lá fora chovia sem parar, e dentro nós enxugávamos uma garrafa de vinho atrás da outra. Vagamente pensei no Jorge, ele devia estar dormindo em algum vagão da estação de trens. Tinha sido tão fácil chegar até ali. E as histórias dos dois velhos marinheiros atiçavam a vontade de seguir para a Ilha de Chiloe, e mais ao sul ainda, até Punta Arenas, Terra do Fogo… Mas em Puerto Montt se terminavam os trilhos… Dali para o sul era só água… Gelada…
Só então me dei conta que havia um a mais à nossa mesa. Um rapaz magro, de rosto sério, nariz pontudo e cabelos de azeviche tinha vindo sentar bem junto do velho Pagel. E cochichava coisas no ouvido dele. Não sei que coisas seriam, mas o ex-comandante foi se transformando, e passou a olhar o senhor Villegas com ar de poucos amigos. Este por sua vez, nada percebia, e quanto mais bebia, mais delicado e amável se tornava.
Então o velhinho me pediu para acompanhá-lo mais uma vez na canção do desterrado, que ele havia aprendido em uma Nochevieja, de um fim de ano solitário num longínquo porto estrangeiro. Fiz a introdução, o senhor Villegas estufou o peito e pôs-se a cantar, com uma voz bem mais vibrante que das vezes anteriores. Quase ao mesmo tempo levantou-se o Pagel com a garrafa de vinho na mão e, estranhamente cerimonioso, veio encher o copo do seu ex-companheiro. E ficou de pé ao seu lado, olhando o rosto do Villegas e acompanhando cada verso que este cantava, com uma expressão cada vez mais sinistra.
Es caminar siempre errante mi triste sino
Sin encontrar el descanso en mi camino
Ave perdida, nunca he de hallar
Un nido amante donde cantar…
Só até ali chegamos, porque num súbito arranque o velho Pagel desfechou um soco no peito do outro, e se acabou a cantoria. No silêncio que se fez, o ex-comandante se recolheu atrás de uma porta, seguido daquele pajem que o havia incitado contra seu velho amigo. Por motivos que nunca saberei.
Talvez nem o senhor Villegas soubesse. Com um olhar muito triste, ele vestiu seu sobretudo, pegou o guarda-chuva e partiu, sem dizer palavra. Assim acabou a noitada, e eu fiquei ali escutando o barulhinho da chuva, na maior apatia. Até que se abriu uma porta e apareceu uma moça ruiva, cabelos de fogo, dizendo que seu patrão me convidava a passar aquela noite em seu hotel. E de lampeão na mão, me conduziu por escadas tortuosas e rangentes, até o sótão do velho casarão, de onde se viam os telhados feitos com chapas de madeira. No sótão havia uma cama de casal, com pelegos de carneiro. A moça me desejou buenas noches e já ia descendo, mas eu supliquei que ela ficasse alguns minutos. Que eu queria preguntarle algunas cosas.
Ela se chamava Sabine e ficou algumas horas comigo, debaixo dos pelegos de carneiro. Me contou que era alemã, e fazia alguns anos que estava no Chile. Tinha vivido na Colonia Dignidad, mas fugiu de lá, fazia alguns meses.