(Foto: Blog Venturas – Venturas Viagens)
Partimos de Puerto Montt numa manhã gelada, desistindo de ir conhecer a ilha de Chiloe, um caminhão nos deu carona até Valdívia. Entramos na cidade e caminhando por uma rua central, um som muito ritmado de ukulele, guitarras e tambores nos atraiu. Um grupo de gente de pele acobreada dançava em pares no coreto de uma praça, os homens vestindo apenas uma tanga e as mulheres uma saia de penas verdes, rosa, azul e branco, com dois cocos cobrindo os seios. Os movimentos e gestos sensuais das mulheres pareciam evocar a sinuosidade das ondas do mar, enquanto cantavam uma melodia numa língua exótica.
…sau reho vari
erua simo simo simo
pou pou kari
erua maki maki…
Era um pessoal da Ilha da Páscoa, alguém à minha esquerda com quem puxei conversa me informou. Jorge tinha ido pra perto dos músicos, no outro lado do coreto, e ao voltar arreganhou um sorriso que não entendi, mas uns tapinhas no meu ombro direito explicaram. Era o ceramista mirista Robin, que a gente tinha conhecido em Temuco.
Robin nos levou para o parque Saval, na ilha Teja, que está circundada pelos 4 rios de Valdívia: rio Calle-Calle, rio Caucau, rio Cruces e rio Valdívia, que atravessamos pela ponte de mesmo nome. No parque Saval estava se realizando um festival internacional com exposições de artesanato e pintura, além de outras manifestações, algumas inusitadas como pudemos constatar mais tarde. Havia um grande pavilhão de lona destinado às apresentações musicais e de dança, para lá nos dirigimos.
Jorge me apresentou à senhora Felmer, uma cinquentona de ascendência alemã encarregada dos espetáculos musicais do festival, e pouco depois eu estava sentado no palco cantando e dedilhando no violão. Aprovado no teste, fui contratado para tocar diariamente no Pavilhão e participar de apresentações no centro da cidade, em troca de comida e alojamento. E meu empresário Jorge também foi contratado, como artesão…
Nos alojaram com a família do señor Silche, um escultor/poeta neto de imigrantes alemães e casado com uma mulher mapuche, com quem tinha duas filhas adolescentes. Nessas garotas a mistura das etnias tinha sido muito feliz, eram muito lindas.
Mas o Silche era um provocador acirrado, e no estande onde expunha seus trabalhos as pessoas podiam ler que suas obras eram feitas com terra, sangue, serragem e esperma…
E num mini poema seu exposto em grandes letras se lia:
Burgués,
donde tienes tu corazón?
En el Slip ! En el Slip!
E passamos a cruzar todos os dias a ponte Pedro de Valdívia, pelas manhãs rumo ao parque Saval, e nas noites de volta ao simpático lar mapuche-alemão.
Minhas performances no Pavilhão foram posicionadas por doña Felmer logo após um grupo que interpretava canções brejeiras chilenas, de duplo sentido erótico-jocoso. O intuito era oferecer ao público músicas brasileiras pouco conhecidas no Chile, quase como um bombom musical exótico no meio das canções em espanhol. E depois de mim vinha um par que se chamava Camino de Luna, a mulher muito bonita, cantavam afinadíssimos canções que para mim eram um ponto alto do espetáculo, pela qualidade musical.
En el rio Calle-Calle
Se está bañando la Luna,
Se está bañando desnuda
Y está vestida de espumas…
Mas a apoteose das noitadas era proporcionada pelo pessoal de Rapa Nui, que pela primeira vez na história apresentava danças e canções da sua terra, que viveu durante séculos completamente isolada no meio do oceano Pacífico, a 3700 quilômetros da costa do Chile. Fazem só poucos anos que a LAN Chile criou uma ponte aérea entre a Ilha da Páscoa e o continente. Com Eduardo Pakarati, guitarrista da trupe, aprendi a canção Opa-Opa.
(Rapa Nui passou a se chamar Ilha da Páscoa quando no século XVIII pela primeira vez um europeu aportou na ilha, em época de Páscoa. Se supõe que seus nativos são oriundos das Ilhas Marquesas, mas há grandes mistérios envolvendo essa cultura polinésica, especialmente em relação aos Moais, gigantescas estátuas em pedra vulcânica com forma de rostos de homens. E a Rongorongo, escrita dos povos da Ilha, ainda não foi decifrada. Em 1805 navios espanhóis sequestraram a metade dos habitantes de Rapa Nui, que foram vendidos em leilão como escravos, para trabalhar nas minas do Peru. E décadas depois a metade que sobreviveu na Ilha foi também escravizada, para trabalhar na criação de ovelhas da Compañia Explotadora de la Isla de Páscua, sociedade de capitais britânicos para a qual o governo chileno alugou a Ilha por cerca de 60 anos, até os anos 50. Com a ascensão do governo popular de Salvador Allende, o povo da Ilha passou a se organizar em movimentos sociais. E com grande esperança passou a defender sua cultura e reinvindicar seus direitos).
Sempre que podia eu saía a caminhar pelo parque, nas margens das lagoas de nenúfares e flores de lótus e entre enormes árvores antigas, Sequoias, Pinos Radiatas, Robles e outras espécies nativas da região, entre as quais havia uma famosa com mais de trezentos anos de idade.
E nas conversas com Robin, que tem ascendência mapuche, ouvimos a história incrível de Caupolican, que sucedeu a Lautaro no comando da resistência aos conquistadores espanhóis. Para ser eleito como Toki, chefe guerreiro do seu povo, Caupolican carregou no ombro um pesado tronco de árvore, durante três dias e três noites.