Há menos de 24 horas um amigo participou de uma assembleia condominial para aprovação de contas do exercício anterior, definição do valor do condomínio para o ano que mal começou e a escolha do novo síndico, com mandato de dois anos. Entre uns goles e outros relatou parte do que presenciou, a partir da escolha do presidente da mesa, responsável pela pauta a ser seguida. Um grupo de descontentes com o síndico, que sabidamente candidatar-se-ia a um novo mandato, apoiou um títere. Que passou vergonha por seu despreparo, a despeito de ter sido síndico anos antes … No jargão antigo, uma cavalgadura.
Daí pra frente um espetáculo de grosserias, comportamentos agressivos, típicos de reuniões sindicais, das quais saem vencedores, normalmente, os que não se furtam ao uso de expedientes pouco ortodoxos. Meu amigo percebeu que a oposição ao síndico se organizara com muita sagacidade, dispondo seus integrantes em vários pontos da plateia, dando a impressão de que a insatisfação permeava todos os quadrantes. O resto é irrelevante. Cumpre apenas informar que derrubaram o síndico. O pleito foi apertado, mas venceu a proposta de uma administração dita profissional. Passadas poucas horas meu amigo confessou um alívio. Pelo menos não vencera uma cavalgadura naquele prélio pouco digno, no qual só faltou o pugilato.
Com o rebaixamento do trato entre as pessoas, com o sumiço de traços de fidalguia, com o ocaso da saudável política de boa vizinhança, tornou-se difícil trocar ideias. O mundo com pressa em formar convicções, radicalizado, não é mais a arena para mútuas contribuições. Desqualificar os contrários é prática corrente, por mais desonesta que seja.
Quando cheguei em São Paulo para trabalhar – e lá ficaria por mais de vinte anos,- tomei contato pelos jornais com a realidade sindical e suas táticas. De comandantes sindicais estipendiados por patrões para a conclusão de acordos para o encerramento de greves a assembleias encerradas por sururus que requeriam intervenção policial. Do comando de pelegos a militantes comunistas, minoritários, cuja atuação barulhenta e sagaz em assembleias até gerava a impressão de que constituíam maioria.
Isto foi há quarenta anos. De lá pra cá minha geração, pelo menos os idealistas que a compõem, vem colhendo desencantos, como jardineiros em jardim de flores murchas. O emprego desonesto de palavras de ordem e os ataques fuzilantes a pensamentos não alinhados com o status quo dificultam o entendimento das coisas, mesmo para os que queimam seus neurônios.
Encontrar nesta selva de informações incultas e tendenciosas raciocínios que mereçam atenção é como tomar água fresca depois de uma caminhada no deserto. Tal foi a minha sensação quando li “As vantagens do pessimismo”, de Roger Scruton, a começar pela menção às palavras direita e conservador:
“O poeta e historiador Robert Conquest uma vez anunciou três “leis da política”, das quais a primeira declara que todos são de direita com relação àquilo que conhecem melhor. Conquest definia como “de direita” alguém que nutre suspeitas pelo entusiasmo e pelas novidades, e que é respeitoso para com a hierarquia, a tradição e os costumes estabelecidos. Um sinal de ignorância, de acordo com Conquest, é a preferência pela originalidade em detrimento dos costumes, e pelas soluções radicais em detrimento da autoridade tradicional. Naturalmente, precisamos de originalidade, assim como poderemos precisar de soluções radicais quando as circunstâncias mudarem radicalmente. Mas precisamos dessas coisas quando as condições são excepcionais, e era contra o desejo de ver todos os casos como excepcionais que Conquest estava emitindo alertas. Conquest escrevia como um conservador em uma atmosfera acadêmica dominada pela esquerda política. Sua própria carreira foi prejudicada quando ele manifestou argumentos pessimistas sobre o comunismo em uma época em que os otimistas haviam abraçado o comunismo como a prova de suas esperanças”.
Scruton utiliza a expressão “otimista inescrupoloso” para qualificar os ideólogos que sabem do fracasso do que defendem, mas se recusam a reconhecê-lo, sempre refutando a realidade e culpando pelo fracasso os empecilhos fascistas, burgueses, conservadores, radicais, …, que se interpuseram … Os otimistas inescrupulosos trocam o foi ou o é pelo será. O sucesso do que já se revelou um fracasso inevitável está no futuro: “Uma das características mais marcantes da mentalidade dos otimistas é que eles nunca aceitarão a responsabilidade pelos efeitos de suas próprias crenças, ou admitirão os perigos oriundos das falácias que os nortearam”.
“O pessimismo judicioso nos ensina a não idolatrar os seres humanos, mas a perdoar seus defeitos e a lutar em particular por sua recuperação. Ele nos ensina a limitar nossas ambições na esfera pública e a manter abertas as instituições, os costumes e os procedimentos em que os erros são corrigidos e as falhas, confessadas, em vez de mirar algum novo arranjo em que os erros nunca são cometidos. O pior tipo de otimismo é aquele que animava Lênin e os bolcheviques, que fazia com que acreditassem que haviam colocado a humanidade na trilha da solução dos problemas residuais da história, e que fez com que também destruíssem todas as instituições e todos os procedimentos pelos quais os erros podem ser corrigidos. A máquina resultante, desprovida de qualquer mecanismo de feedback com relação ao seu funcionamento, continuou a operar, é verdade, por outros setenta anos. Porém, quando ela ruiu, sessenta milhões de pessoas haviam morrido como resultado da insensatez e da perversidade que foram programadas nela, e a sociedade que sobreviveu a esse desastre foi (e é) indubitavelmente a mais desmoralizada que o mundo jamais conheceu”.
O autor também combate a ideia de Rousseau de que todo homem nasce livre, contrariando Hobbes, segundo o qual o estado da natureza é o da guerra de todos contra todos. Aliás, não esqueçamos que a pregação de Rousseau chutava o pecado original – “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”,- e inspirou a revolução francesa: ”Pouco tempo depois, Robespierre estabeleceria aquilo que chamou de “o despotismo da liberdade”, cortando qualquer cabeça que tivesse algum problema com isso. A contagem final dos mortos, de acordo com o historiador francês René Sédillot, foi de dois milhões, com a Europa nesse ínterim mergulhada em guerras continentais que destruiriam as esperanças das pessoas mais racionais”.
Quase diariamente escutamos invectivas que recordam a Inquisição. Se não podemos defender seus erros, devemos lembrar aos acusadores alguns períodos históricos com consequências muito maiores “As instituições da monarquia foram destruídas uma a uma, e no seu lugar surgiu, em vez da libertação prometida pela Revolução, um terror sem precedentes que se expandiu rapidamente, não ocorreu aos jacobinos nenhum outro remédio se não o de decepar ainda mais cabeças”.
Encerro a colagem de trechos do livro – que naturalmente recomendo,- com menções à educação:
“com base na autoridade de uma variedade de pensadores que iam de Rousseau a Dewey, que a educação não trata da obediência e do estudo, e sim da autoexpressão e das brincadeiras. Era considerado suficiente libertar as crianças das limitações da sala de aula e do currículo tradicional, para que elas expressassem seus poderes criativos naturais, desenvolvendo-se por meio da liberdade, e adquirindo conhecimento como resultado de explorações e descobertas e não através de “decorebas”. (…..) a liberdade é algo que conquistamos. E nós a conquistamos por meio da obediência. Somente a criança que aprende a respeitar e a ceder aos outros pode respeitar a si própria. E uma criança assim é aquela que internalizou as regras, os costumes e as leis que formam as fronteiras de um mundo público compartilhado. As crianças egoístas, que ignoram essas limitações, andam à solta pelo mundo público, porém não possuem uma concepção real dele como um lugar público, um local compartilhado com os outros, cujo respeito e afeição são as recompensas do bom comportamento. Elas não são livres naquele mundo, apenas sem rumo, e os obstáculos que os outros colocam em seus caminhos são uma fonte de raiva e de alienação”.
Não é segredo que na educação é que se dá o grande desastre, seja pelo rebaixamento do nível, seja pela pregação ideológica de modelos historicamente fracassados. Uma lavagem cerebral a serviço do atraso, que ressentidos no mundo inteiro seguem abraçando.