Nosso retorno a Santiago coincidiu com a inauguração do edifício construído para abrigar a terceira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, mais conhecida como UNCTAD III. A construção do edifício começou no primeiro ano do governo de Salvador Allende e se recrutaram milhares de trabalhadores voluntários, que conseguiram terminar a obra no tempo recorde de 275 dias. Jorge e eu passamos algumas horas no pátio traseiro do edifício da UNCTAD – adjacente à rua Villavicencio e dotado de um lago com uma escultura de globos -, onde um grande número de artistas se havia concentrado durante o evento.
Ali conhecemos o Lucho, luthier de guitarras, que nos convidou a pernoitar em sua casa. Lucho morava com sua mulher e a filhinha Cholita num velho e depauperado casarão de começos do século, cujas paredes de barro periclitavam algo mais a cada chuva prolongada que caía. Ficava na rua Carmen – uma transversal da principal avenida de Santiago, popularmente conhecida como Alameda – e estava do mesmo lado da rua e a pouca distância da Peña de los Parra, espaço musical criado em 1965 por Angel e Isabel, filhos de Violeta Parra.
A Peña de los Parra tinha se convertido no ponto fulcral da Nueva Canción Chilena, e atraía intelectuais, artistas, políticos e turistas estrangeiros, que para ali convergiam nas noites de quinta-feira a sábado. Para tomar vinho, comer empanadas e sopaipillas e escutar as canções de Victor Jara, Tito Fernandez e Atahualpa Yupanqui, entre muitos outros. Ao escurecer se tomava um transporte coletivo até perto da esquina de Alameda com Carmen, e dali se caminhava várias quadras até a Peña. Passando obrigatoriamente pela porta apenas encostada do casarão do luthier.
Nunca perguntei, mas não consertar o trinco da porta talvez fosse um cálculo estratégico do Lucho, que adorava receber visitas espontâneas de personagens do mundo boêmio e artístico no seu atelier, quem sabe até na esperança de conseguir novas encomendas para a construção de instrumentos musicais. A mulher de Lucho se recolhia cedo com a filha pequena, fechando a porta da habitação que tinham nos fundos do atelier. Mas Lucho ia noite adentro, e era comum ver de repente entrar um ou mais desconhecidos vindos da Peña, que encerrava as atividades no começo da madrugada.
Numa das muitas noites que passamos no taller de Lucho, a porta girou silenciosa e entraram dois homens, num momento em que Lucho havia saído e eu estava tocando uma música bem lenta no violão. Continuei tocando, sem fazer muito caso da inesperada visita noturna, e os dois ficaram ali de pé com as mãos entrelaçadas atrás das costas, ouvindo em silêncio. Mas então o de cabelo mais longo, que aparentava ser mais velho, mais estranho e de expressão mais nervosa e abatida, puxou um caderno do bolso e pôs-se a escrever algo, enquanto eu tocava. Depois ele arrancou a folha e me passou, eram versos improvisados inspirados na minha música.
Tinha a cor dos olhos dela
Como uma janela
Transparente e bela
E eu vivia nela
Pra poder sonhar…
O desconhecido resultou ser Geraldo Vandré, que Lucho ao chegar de volta saudou dum jeito meio teatral e bem familiar, dando a entender ser ele uma presença habitual no casarão. Saber disso me deixou mais aceso, eu curtia muito as canções do Vandré, especialmente as da sua primeira fase. E lhe ofereci o violão, pedindo que tocasse “Fica mal com Deus”. Ele relutou em pegar o instrumento, virando o rosto para a direita e me lançando olhares de esguelha inquietos através dos óculos embaçados. Mas depois acedeu ao meu pedido, fechou os olhos e cantou sua composição, se acompanhando no violão dum jeito que me impressionou, por ser bem tosco.
Eu tinha feito um arranjo para essa música usando muitos acordes e agora assistia o autor tocá-la usando apenas dois, do começo ao fim. E a sua mão direita também só usava dois dedos para pinçar as cordas, polegar e indicador, mas nem de longe como o guitarrista cigano Django Reinhardt, que teve três dedos decepados por uma explosão de gás no seu trailer. Me pareceu que essa técnica rudimentar de que se servia Vandré tinha feito crescer absurdamente o dedo indicador em relação aos demais, e ao abrir os olhos ele percebeu a fixidez com que eu fitava sua mão.
– Fui por outro caminho… – Vandré falou, me lançando um olhar irônico de soslaio.
E passou a me contar das suas excursões por países europeus. E do projeto Das Terras do Bemvirá, em que estava trabalhando. E se queixou que o governo militar não lhe concedia permissão para retornar ao nosso país, apesar dos seus transtornos psíquicos.
Das músicas que fiz em parceria com Vandré, a primeira foi essa que nasceu de improviso no atelier do Lucho. E a feitura da última me deu uma amostra do agravamento do seu transtorno mental. Já era 73, começo do outono, eu ia numa micro rumo ao meu trabalho no restaurante da Caixinha, na avenida Providencia, quando numa parada vejo subir o Vandré.
Ao me avistar – fazia um bom tempo que a gente não se via, apenas Manduka me havia contado alguns lances dele – Vandré visivelmente se alterou e veio disparado ao meu encontro, se segurando no corrimão do ônibus, me chamou a atenção seu aspecto bem mais decaído. E ali estava ele na minha frente, com um olhar alucinado e distante, agarrado ao corrimão com uma mão e remexendo no bolso interno do seu casaco com a outra, de onde puxou uma folha de papel velho contendo versos, que me entregou dizendo: – E aí bixo, tudo bem? E sem esperar qualquer resposta minha, se afastou tropegamente em silêncio e desceu na parada seguinte.
Foi a última vez que nos vimos, mas depois fui procurar ele na rua Villavicencio, onde morava, para mostrar a música que fiz para a canção da folha de papel, “Pra quem se lembrou de mim”. Ele não estava, quem me recebeu foi o Luís – que fazia parte do meu grupo de teatro e viria a morrer durante o golpe militar. Luís me mostrou um quarto vazio, onde o único que havia, pendurado numa parede, era o rosto de uma menina desenhado por Picasso. E me contou que Vandré tinha sido levado em camisa de força para o Hospital Psiquiátrico (antigo Manicômio Nacional), que fica perto do Cemitério, em Recoleta. Manduka foi lá ver ele, mas não permitiram sua entrada e ele pôs-se a cantar do lado de fora, ao pé da janela. Vandré ouviu e gritou:
– Mandarim! Mandarim, me tira daqui!