Faz pouco, na madrugada do dia 25 de outubro de 1973, o José Lavechia veio ao meu encontro com uma folha de papel velho na mão e uma expressão no olhar onde se via a noite passada em claro, que abria para outras noites de toda uma vida e era como um abismo escuro, em que não dava pra saber por onde se caía. Mas talvez o abismo estivesse em mim, e o olhar dele apenas fosse um espelho em que me olhei, ao emergir do subsolo da Embaixada.
Dizem que o olhar é a janela que abre para a alma da pessoa. Mas como saber se o que vi foi da alma dele ou, por reflexo, da minha própria alma? Ou se em seu olhar se sintetizou uma espécie de alma coletiva de todos os fugitivos que neste palacete buscaram abrigo? No seu olhar vi medos e fantasias torturadas que procuramos por todos os meios ocultar.
Seja como for, acolhi o papel que ele me entregou, dizendo pra mim pôr música e cantar na penha da lavanderia. Olhei o que ele havia escrito naquela folha meio rasgada, deslizei cansado e meio a contragosto pelo texto.
Na minha mente, também tresnoitada, as idéias apenas se acendiam, muito lentas. Quando terminei de ler aquelas 21 linhas, fui assaltado por lembranças e pensamentos de todo tipo, que me confundiram por uns momentos e depois cederam lugar a uma pequena alegria, de menino que acaba de descobrir algo muito especial.
Então, o velho guerrilheiro tem outro por dentro… Ele fica de olhos abertos no escuro, mas não é só prá vigiar seus demônios ou infiltrados de verdade, ele escreve canções. E de profissão ele é sapateiro… Então, o velho sapateiro veio me propor uma parceria musical… Pouco depois, deitado sob o piano de cauda, o pensamento de um poeta me fez meditar.
Um homem de carne é um homem de sonho…
Sim, mas quando o sonho toma conta de tudo, a gente quer ser só de carne. E se deixar diluir, como um torrão de qualquer coisa na água morna de um rio tranquilo, que nos leve para onde quiser, sem recordações, sem nada…
Agora sou um monte de ossos cansados, aturdido por mil e um pensamentos que se enredam uns nos outros, como num poço cheio de cobras. Fico pensando no parceiro recém descoberto, na sua personalidade múltipla. Quem de nós dois sonha mais?
Este sapateiro-guerrilheiro-poeta junta suas duas cadeiras paranóicas ali naquele patamar, onde começa a escadaria de pedra que serpenteia até o subsolo. A escadaria que eu desço nas noites, me alucinando com a idéia de que sou uma reencarnação do músico das priscas eras que desceu ao reino dos mortos, para libertar a outra metade da sua alma, prisioneira das trevas. (Dentro da Embaixada, Lavechia é o Velho. Com seus 54 anos e os cabelos brancos, tinha direito a um colchão. Mas ele recusou, não quer dormir. Diz que há inimigos infiltrados entre os refugiados, só esperando que ele descuide a vigilância. Por isto, costuma juntar duas cadeiras, onde deita e cochila um pouco, quando tudo parece sob controle. Evita, porém, o sono mais prolongado, molhando o rosto com a água de uma garrafa que tem ao lado, durante a noite. E sempre leva consigo um pedaço de pau, para sua defesa pessoal, em caso de ataque. Serão os fantasmas da vida na clandestinidade e na prisão, fugindo de um lado a outro, acossado e solitário…)
Eu penso no meu parceiro. Quem de nós é o maior sonhador?
Aqui pouco se dorme e muito se sonha.
Esta é a arca dos morto-vivos, boiando cansada na calmaria do velho mar do tempo.
Cada um dos tripulantes desta nau tem por camarote seu próprio poço, com suas cobras. Elas nos mordem e o monstrengo anota no seu livro os interessantes efeitos. O monstrengo do fim do mar desta noite.
Que agora voeja, como uma imensa e aveludada borboleta negra, sobre a cabeça do Lavechia. E fica regendo este estranho concerto, no qual eu faço meu solo de piano.
Ali está meu parceiro, pendurado nas suas duas cadeiras. Vigiando com olhos arregalados de arara noturna, com um sarrafo na mão, no encontro das correntes que vão nos arrastar, não sabemos para onde.
Que sonhos vem agora – na água suja e estagnada destas horas – sonhar o Sapateiro?
Estamos em pleno mar da grande noite… Duas correntes escuras aqui se estreitam, num abraço insano…
Vestido com seu reluzente uniforme de muitas estrelas, o monstrengo foi conversar com Lavechia.
– Nós te internamos para o tratamento, lá no nosso hospital. Te penduramos de cabeça para baixo, para que tua mente pudesse aprender a ver o mundo de um jeito mais saudável, deixando pingar os sonhos perniciosos, com teu sangue; teu cabelo branco ganhou um tom mais vivo, avermelhado. Depois aplicamos os fios elétricos, para te dar mais energia e afastar essa sonolência achacosa. E então conversamos com você, pelo telefone, para a gente se entender melhor. Novos métodos, recém-descobertos pelos sábios do Norte, na terapia deste tipo de enfermidade… Quando você saiu de lá, estava curado. Tudo o que era mau havia sido extirpado. Apenas havia ficado o essencial: esse grande olho de arara, que se abre na escuridão.
O que eu vivi está aqui comigo, no meu poço. Tem muitas cobras sim, mas está cheio de grilos. Basta eu puxar um pela perna, e se desfiarão todas as estrelas que vi cair, deitado na areia da praia.
O capitão que me prendeu na manifestação foi me xingando todo o trajeto, enquanto seus comandados me conduziam de braço torcido até o camburão. Ele se colava em mim e me desferia golpes rápidos e repetidos com seu cassetete para golpear meus testículos, eu tentava esquivar. Foram momentos muito divertidos, a julgar pelo seu sorriso. Ele usava óculos escuros e me deixou o interior da coxa inchada e azulada.
Vocês que não dormem, nas noites soturnas,
Pressentem acaso, na solidão…
Não posso dormir, no meu poço. E o monstrengo, quando enche o saco de atormentar o Lavechia, vem me cutucar com sua vara, vem me acender as visões do tempo, para trás e para frente. Aí vem o monstrengo de novo, ele sussurra no meu ouvido…
– Não perde tempo com a loucura do Sapateiro. Lavechia é a Velha, em italiano. O tempo é invenção da Velha. Aqui, na casa dela, ele não passa, está dormindo. Cada um de vocês está no seu poço, e em cada poço a Velha vai urdindo uma desgraça diferente.
– Então, o Velho… é a Velha… – falo comigo mesmo, debaixo do piano.