Cristais, cartas, búzios, pêndulos e quejandos. São estas algumas das crenças do homem ateu e, em muitos casos, agnóstico, deste século. E não só. Muitos católicos praticantes recorrem a estas práticas ignorando que são incompatíveis com a sua fé ou simplesmente não fazendo caso disso. A generalização na Europa das denominadas práticas ocultas provenientes de países africanos e do Brasil – adivinhação, espiritismo, esoterismo e uma nova religiosidade ligada à Nova Era – e o seu protagonismo no espaço publico tornam premente a divulgação de alguns esclarecimentos.
Além da leitura dos horóscopos e das previsões do ano as televisões dão palco a cartomantes e quiromantes como se fossem actividades credíveis. No fim do ano de 2019 foram divulgadas as previsões de uma conhecida taróloga para o ano a seguir mas não foi verificado nem divulgado o acerto das mesmas. O ano 2020 foi previsto por essa taróloga como muito positivo para Portugal quando foi, afinal, um ano péssimo com inúmeras mortes e o recolher obrigatório provocado pela pandemia da covid, com graves consequências também no tecido económico. No Brasil uma conhecida cartomante que exerce actividade nas redes sociais previu que em 2023 a Igreja Católica iria ter outro Papa, o que também não aconteceu. O espírito crítico e a responsabilidade social estão muito ausentes na difusão pública destas actividades. A nível pessoal recordo uma amiga que há uns anos recebeu como prenda de aniversário um voucher para consultar uma cartomante. Ela estava ansiosa por ser avó, mas a profissional respondeu-lhe que não via nada nas cartas. Nesse mesmo ano as duas filhas engravidaram quase ao mesmo tempo e já tem 4 netos.
Uma situação mais recente revelou-me uma realidade que desconhecia. Foi numa conversa casual, com uma senhora licenciada e que tem uma intensa actividade intelectual diária. Ela disse-me que já lhe tinham feito o diagnóstico de Alzheimer e que lho tinham revertido, ambas as situações através do pêndulo de cristal. Perante a minha ignorância, especificou que tinha recorrido à radistesia espiritual. O dicionário define a radistesia como a “sensibilidade a qualquer espécie de radiações; forma de adivinhação por meio de movimento (a que seriam sensíveis certos indivíduos) de varas ou de esferas pendentes, que revelariam, à distância, a presença de fontes, de jazidas de minérios, de cadáveres, de doenças, de objectos perdidos (“Dicionários Porto Editora”). Uma busca mais atenta classifica esta actividade como pseudociência.
Há uns anos estive integrada numa equipa que preparava a abertura de um canal temático na TV cabo. Um dos responsáveis editoriais do canal revelou a intenção de criar um programa com uma adivinhadora de quem tinha muito boas referências. A adivinhadora foi conduzida ao estúdio e o ensaio foi feito com as pessoas da equipa que decidiram consultá-la. Entre outras afirmações ela afirmou que o canal ia ser um sucesso. Infelizmente para nós que já lá estávamos a trabalhar, as previsões não se concretizaram e o projecto não sobreviveu. Abortou poucos dias depois e nunca foi para o ar. Lembro-me de me terem perguntado por que é que eu não fui falar com ela, se não tinha curiosidade em consultá-la ao que respondi, então como hoje, que não acreditava nos poderes especiais ou dons de adivinhação alegados por determinadas pessoas e que além disso era católica praticante sendo essa actividade incompatível com a minha fé.
O que diz o Papa
O Papa Francisco tem exortado os católicos, em várias ocasiões, para não frequentarem estes costumes que são incompatíveis com a religião “Se você escolhe Cristo não pode recorrer ao mago: a fé é abandono confiante nas mãos de um Deus confiável que se mostra não através de práticas ocultas, mas pela revelação e com amor gratuito. (…)! Eu pergunto: quantos de vós vão atrás de tarô, quantos de vós procuram as pessoas que lêem as mãos e as cartomantes? Ainda hoje, nas grandes cidades, os cristãos praticantes procuram essas coisas”, alertou o Santo Padre (Catequese, Dezembro 2018).
Um raciocínio mais crítico poderá dizer que à Igreja Católica como instituição não agradam, obviamente, potenciais concorrentes que lhe retirem o protagonismo. Mas tanto as exortações do Papa como os ensinamentos do Catecismo (pontos 2111 a 2117) reflectem o conteúdo dos escritos muito antigos, contidos na Bíblia sobre estas questões
A Igreja ensina ainda que praticar magia e ocultismo é correr o risco de abrir a porta para as forças demoníacas, quer se esteja ciente disso ou não. Francisco é o Papa que mais tem falado sobre a existência do mal, personificado no diabo: “Com o diabo não se dialoga. Nunca! Não se deve discutir, nunca. Jesus nunca dialogou com o diabo. Expulsou-o (Catequese Dezembro 2023).
“O diabo existe também no século XXI. Devemos aprender com o Evangelho como lutar contra ele”: é esta a inscrição na capa do livro da autoria do Papa, publicado em 2019. Francisco faz questão em explicar que não se trata de uma abstracção simbólica, fruto de fantasias, mas de uma força negativa e incontrolável capaz de destruir a humanidade, na corda bamba entre o bem e o mal.
O conhecimento empírico mostra-nos que a consulta destas práticas é transversal a todas as classes sociais e formação intelectual embora seja predominante nos níveis de escolaridade mais baixos. Em relação aos profissionais deste sector o mesmo conhecimento empírico revela que a maioria são mulheres de classe baixa, dos 35 aos 70 anos, casadas com operários ou reformados que dizem ter o dom e mudam de actividade para o exercer. Mas não há dados estatísticos sobre o número de pessoas registadas com esta actividade nem sobre a progressão da mesma.
O INE (Instituto Nacional de Estatística) informa que não pode disponibilizar essas estatísticas pois não é possível desagregar as várias situações incluídas na CPP/2010 – Classificação Portuguesa de Profissões – pois agrupa cenários muito diversos:
- Outros Trabalhadores dos Serviços Pessoais
Compreende as tarefas e funções dos astrólogos, adivinhadores e similares, pessoal de companhia, ajudantes de quarto, agentes funerários, embalsamadores, prestadores de cuidados a animais, instrutor de condução e outros trabalhadores dos serviços pessoais, com especial incidência na previsão de acontecimentos futuros, fornecimento de serviços de acompanhamento pessoal, treino e cuidados de animais, serviços funerários e de embalsamento de animais e instrução na condução de veículos.
Estes profissionais do oculto afirmam-se dotados de poderes especiais e prometem dar a quem os procura segurança e clarividência. Desdobram-se em conselhos assertivos para todas as dúvidas, fornecem soluções para todos os desgostos e dão directrizes para construir um futuro bem sucedido. Por vezes, até vendem soluções na forma de remédios caseiros que dizem ser infalíveis para a pessoa se libertar de maus-olhados e amarrações, ou para atingir outras pessoas que o cliente nomeie. Tudo isto com a autoconfiança de quem tem sempre uma resposta bem acolhida para o que não resultar pois no cliente o emotivo predomina sobre a razão e este manifesta uma nostalgia do religioso e uma ânsia do transcendente.
Religião ou espiritualidade: as diferenças
George Steiner (1929-2020) foi um dos grandes intelectuais contemporâneos que dedicou uma parte da sua obra a estudar e a escrever sobre a crise da cultura ocidental nos últimos 150 anos. Declarou-se ateu, mas não deixou de inquietar-se com a extensão da credulidade na sociedade contemporânea:
“O nosso ambiente psicológico e social é o mais afectado pela superstição e o irracionalismo de todo o tipo, desde o declinar da Idade Média e mesmo desde a crise do mundo helenístico. Astrologia, videntes de todo o tipo, percepção extra-sensorial, lixo satânico, expande-se em livros e revistas, gurus, meditação zen…. O regresso do irracional é uma tentativa de preencher o vazio deixado pela (falta) de religião”. (“Nostalgia do Absoluto”, 1974)
Outras explicações para a causa e a proliferação destes fenómenos são dadas na obra do padre Jean-Christophe Thibaut (1960). Nascido e educado num ambiente familiar ateu praticou desde muito novo – dos 8 anos até aos 22- espiritismo, magia negra e pêndulo. Ordenou-se padre (em 1992) após uma conversão fulminante (fez a primeira comunhão aos 24 anos e a confirmação aos 28) mas só em 2021 escreveu um livro sobre este período da sua vida intitulado “ A prisão dos espíritos”.
Numa entrevista recente (Aleteia 2022) Thibaut associa a procura do esotérico ao fenómeno da auto-religião, que começou a despontar nos anos 60. Um fenómeno onde cada pessoa constrói a sua própria religião que “…assume a forma de novas espiritualidades que irrigam uma série de práticas de desenvolvimento pessoal, medicamentos alternativos ou causas ideológicas apocalípticas, até mesmo ocultismo e bruxaria.” E acrescenta: “É preciso notar que muitos de nossos contemporâneos fazem a diferença entre religião e espiritualidade. A religião é percebida como um confinamento em dogmas e rituais a serem cumpridos, onde deve seguir -se uma verdade imposta. A espiritualidade, por outro lado, é vista como um espaço de liberdade onde pode buscar-se Deus, a divindade, o absoluto, como se deseja e da maneira que se gosta”. Conclui, no entanto, que estes caminhos “São caminhos materialistas e utilitários, onde não há amor, onde o homem não se volta para o Outro, para o transcendente, mas para si mesmo”.
De facto o amor é o primeiro mandamento da lei de Deus e a caridade a virtude que distingue os cristãos desde sempre. Os cristãos falham, mas procuram ou devem procurar viver uma vida de entrega aos outros em detrimento do isolamento do EU em práticas divinatórias.
Esta pode ser a pedra de toque para destrinçar, numa primeira abordagem, muito superficial, a religião de uma amálgama de espiritualidades heterogéneas que proliferam na sociedade contemporânea.
A autora é Formadora (CCP- certificado de competências pedagógicas) e Licenciada em Direito e em Ciências da Comunicação