Na obra “Despertad! Transhumanismo y nuevo orden mundial” o catalão Alberto Cortina desenha um quadro geral sobre o ideal de humanidade aumentada:
“Tal e como reflete o filósofo francês (Éric Sadin) em seus escritos, o ideal da humanidade aumentada se baseia na noção de que Deus cometeu um erro conosco: nos fez incompletos, inconclusos, imperfeitos, vulneráveis e insuficientes. A biotecnologia, ou melhor dito, a proposta técnico-econômica de nosso tempo, diz Sadin, veio então a resolver milagrosamente todos os nossos problemas.” Quanta ousadia! Quanta soberba!
Cortina entende que “o que se trata realmente com a nova utopia-distopia transhumanista do melhoramento humano é de abraçar uma nova fé: a crença de que a tecnologia nos salvará de tudo. Não necessitamos pois de um Deus Criador-Redentor-Salvador do mundo e do gênero humano. Se vai construindo pois ante nossos olhos uma nova tecno-religião global que nos anuncia o próximo advento da Singularidade baseada em um “novo messias”, uma Superinteligência sacralizada que a “nova humanidade” adoraria como até agora há feito o ser humano com Deus”.
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Tenho dificuldade em admitir que quase dois milênios depois de Cristo, três a quatro milênios depois de Abraão e alguns milênios mais depois do início da transmissão oral da história de Jó a humanidade retorne ao Jardim do Éden e mais uma vez se deixe tentar. E, pior, caia na tentação e radicalize o antropocentrismo.
Acompanhei dias atrás uma ligeira polêmica entre amigos sobre uma falsa manifestação do Papa a respeito do jejum na Quarta-feira de Cinzas. Francisco teria apregoado que o jejum poderia não passar de manifestação hipócrita dos que têm geladeiras lotadas: “comam o que quiserem na Páscoa, o sacrifício não está no estômago, mas no coração”; “um bom churrasco ou um guisado de carne não vai fazer de você uma pessoa ruim, assim como um filé de peixe vai fazer de você santo”.
Acreditar que tal tolice poderia ter partido do Vaticano seria até compreensível se o crente não fosse católico. O amigo que crera em tal bobagem ainda ratificou sua ingenuidade indagando: afinal, para que sacrificar-se?
É difícil encontrar um testemunho maior de imaturidade da parte de quem se diz cristão. A história do cristianismo é um rosário de dores, que dedilhamos na esperança da ressurreição no terreno de Deus. Acreditar que a humanidade possa vencer a morte pela ciência, para mencionar a meta mais ambiciosa do transhumanismo, a imortalidade, é de per si uma ambição puramente terrena, alijada de qualquer transcendência.
Em sua carta apostólica “Salvifici doloris” João Paulo II deixa claro que a dor é um mistério ao abordar o sentido cristão do sofrimento:
“A Sagrada Escritura é um grande livro sobre o sofrimento. Do Antigo Testamento fazemos menção apenas de alguns exemplos de situações que patenteiam as marcas do sofrimento; e, em primeiro lugar, do sofrimento moral: o perigo de morte; a morte dos próprios filhos e especialmente a morte do filho primogénito e único; e depois também: a falta de descendência; a saudade da pátria; a perseguição e a hostilidade do meio ambiente; o escárnio e a zombaria em relação a quem sofre; a solidão e o abandono; e ainda outros, como: os remorsos de consciência; a dificuldade em compreender a razão por que os maus prosperam e os justos sofrem; a infidelidade e a ingratidão da parte dos amigos e vizinhos; e, finalmente, as desventuras da própria nação”.
Aos que padecem deste infantilismo acerca do sentido salvífico do sofrimento, João Paulo II lembra as palavras de Paulo de Tarso: “Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja”; “Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa”.
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Por falar em João Paulo II, no conclave que o escolheria, o Cardeal Benelli atingira 65 votos e Wojtyla 24 votos. Mais dez votos e Benelli seria o novo Papa, mais uma vez um italiano desde o século XVI. Na votação seguinte Benelli obteve 70 votos. Mais cinco, apenas, e ele seria eleito. Wojtila teve 40 votos.
No escrutínio seguinte Benelli caiu para 59 e Wojtila subiu para 52. Na sala de refeições Wyszynski o segurou pelo braço e murmurou “O Espírito Santo ordena que aceite o que está acontecendo”. No sétimo escrutínio Wojtila teve 73 votos e no último, o oitavo, chegou a 97 votos: “O aplauso estrondoso e demorado ecoou pela Capela Sistina. (…) Wojtila continuou sentado, a cabeça entre as mãos, lágrimas correndo entre os dedos fortes, subitamente um homem isolado e solitário sob o apocalíptico Juízo Final, de Michelangelo” (Nos bastidores do Vaticano, Thomas e Morgan-Witts).
Sabemos hoje o quão firme seria o Papa polonês, enfrentando situações complexas, como as que levariam o comunismo de roldão, o Muro de Berlim à ruína e Lefèbvre ao silêncio. Vale lembrar um trecho de sua primeira encíclica, Redemptor Hominis, em que afirma que a Igreja “não dispondo de outras armas, senão das do espírito, das armas da palavra e do amor, não pode renunciar a pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente”.
Mais de três décadas se passaram e o mundo, sem que o perceba, carece da autoridade de um João Paulo II, manifesta até o último de seus dias. Ao se deixarem levar pelos absurdos tirados da cartola, como a ideologia de gênero, ou ao não reagirem oportuna e inoportunamente a tais bizarrices, os homens abdicam de pensar, se acovardam, capitulam diante do inimigo e o inferno celebra.