O que será que foi feito do David H., exposto como vivia, no seu outeiro em Reñaca. Certa vez fui a Valparaíso afim de me informar sobre o que é necessário para obter uma licencia de navegación, e aproveitei para visitar ele. A gente tinha se conhecido nos dias em que andei com Bill entre Viña del Mar e Valparaíso, e na ocasião ele me falou do seu plano de construir uma cabana para morar, no alto do monte.
Parece que David se tornou um personagem bem conhecido no lugar, e logo encontrei alguém que me mostrasse o caminho até sua morada silvestre. Quando cheguei no alto já era o entardecer, e à nossa frente se descortinava deslumbrante o oceano Pacífico. Era uma paisagem de águas em chamas e me capturou de tal maneira, que nem pude retribuir direito a efusão de alegria com que David me recebeu. Ele percebeu isso, e estendendo o braço para o mar lá em baixo me revelou: – Navegando daqui sempre em frente, a seiscentos quilômetros está a ilha do Robinson Crusoé… Dito isso, ele me instou a tomar assento, num dos troncos que havia ao redor do fogo de chão que estava preparando. E enquanto o sol afundava no horizonte oceânico, iniciamos um papo que foi noite adentro.
David é de Nova Iorque, morava no Brooklyn, num pequeno apartamento que herdou da mãe, tinha um emprego nos Correios. A mãe criou-o sozinha, o pai faleceu muito cedo. Ela tinha sido professora, e ao morrer dois anos atrás tinha lhe deixado o apartamento e algumas economias. E entres os livros e pertences pessoais dela preservados, havia um globo terrestre escolar, que exercia um grande fascínio sobre David. Um dia ele se deu conta que queria viver em outro lado, mas não sabia onde, o mundo é grande.
Para resolver esse problema, decidiu que encontraria seu lugar no planeta da seguinte maneira: de olhos fechados moveria o dedo indicador pelo globo terrestre da sua mãe, como a agulha de um contador Geiger, onde ele parasse seria a sua nova pátria. Mas colocou uma condição sine qua non: o nome do lugar teria que ter algo de poético, ou pelo menos soar bonito. Na primeira tentativa seu dedo caiu perto de Estocolmo, ele não quis. Na segunda foi parar bem em cima de Washington, ele rejeitou repugnado. Da terceira vez o dedo parou ao lado de Katmandu, e ele achou que a escolha estava feita. Mas resolveu dar-se mais uma última chance, fechou novamente os olhos e lá se foi seu dedo pelo mundo.
Foi a tentativa mais esmerada, fez o globo girar muitas vezes, e quando ele abriu os olhos viu seu dedo pousado na América do Sul, na costa do oceano Pacífico, sobre o nome Valparaíso. David gostou e quis saber o significado da palavra, foi consultar um dicionário da sua mãe. E teve uma iluminação contundente, quando leu a tradução. Ele caiu de joelhos com as mãos erguidas para o céu e exclamou com um arrepio na pele:
– Sou o rei David e vou ao Paraíso!
Faz algum tempo que chegou nestas latitudes com sua mochila, já conversa em espanhol e, inspirado pelas ocupações de terrenos não aproveitados, construiu sua cabana silvestre na colina, de onde avista seus domínios e o oceano Pacifico. Fica meditando, lendo Henry Thoreau e o Leaves of Grass.
Me explicou que Walt Whitman escreveu várias vezes o mesmo único livro ao longo de sua vida, no começo eram poucos poemas. Mas foi acrescentando outros nas sucessivas edições, que ele mesmo financiava e comentava para os suplementos literários, com um pseudônimo.
Dá-me em outro lado,
Longe do barulho do mundo,
Uma vida doméstica e rústica.
Dá-me, para cantar, minhas canções,
Espontâneas e solitárias,
Feitas só para meus ouvidos.
Dá-me solidão,
Dá-me novamente, ó Natureza,
Tuas primeiras razões.
De vez em quando David desce para ver gente ou comprar alguma coisa, foi assim que nos conhecemos.
Enquanto conversávamos, tomando chá, o sol espalhou seus últimos reflexos sobre as águas e afundou atrás do oceano. Escureceu e sobre nós apareceu uma estrela brilhante, apontei para ela:
– É o planeta Venus, no meu país nós chamamos de Estrela d’Alva.
David olhou para cima um momento e moveu a cabeça:
– Não, nesta época do ano e a esta hora, só pode ser Júpiter.
E entrou na cabana, trouxe de lá um candeeiro, acendeu e pendurou numa estaca, fincada ao lado do fogo. Depois abriu um livro e começou a ler. Era um poema, na praia ao anoitecer. Um homem e sua filha contemplam o céu, onde brilham Júpiter e, um pouco abaixo, as Plêiades. A menina chora baixinho, ao ver as nuvens enormes, que engolem as estrelas. O pai a consola sussurrando em seu ouvido:
As nuvens devoradoras não vencerão,
O céu não será delas por longo tempo,
Júpiter ressurgirá, seja paciente.
As Plêiades ressurgirão, elas são imortais,
Todos estes astros de prata e ouro brilharão novamente,
Os vastos sóis imortais e as luas pensativas brilharão novamente.
Naquele momento, por coincidência, a lua emergiu detrás de uma nuvem, à esquerda de Júpiter e um pouco mais à frente. Meus olhos escorregaram pela encosta, com sua vegetação agora coberta por um manto fosforescente. A voz de David vinha de algum lado, que poderia ser qualquer lado, ondulante e misturada ao rumor do vasto oceano.
Mas, consideras apenas o funeral das estrelas?
Existe algo ainda mais imortal que as estrelas,
Algo que perdurará mais do que o sól ou qualquer planeta giratório…
Existe algo…
O céu se havia salpicado de todos os astros e a lua avançava como um barco de prata em direção ao oceano. Na praia as ondas rebentavam com um fragor surdo e pus-me a pensar no Robinson. Que segundo David, Defoe escreveu baseado no relato verídico de um espanhol que naufragou e sobreviveu 8 anos num banco de areia do mar Caribe, comendo mariscos e tartarugas, recolhendo água da chuva com as conchas vazias, o corpo nu coberto de pelos e a mente trilúcida.