Os dias na Embaixada vão se tornando monótonos e repetitivos. Vai se instalando um clima de estagnação, cujos efeitos me são familiares, de outros momentos no passado. Em contrapartida, minha memória prefere pescar nas lembranças aqueles dias, mais raros, em que por força de um misterioso conluio os eventos e as situações mais díspares parecem enredar-se, e os fatos da vida parecem não ser obra do acaso e sim peças de um plano secreto, em que tudo está conectado. Um desses dias especiais começou no atelier do luthier Lucho. Era em julho, eu tinha ido lá bem cedo, pra devolver umas ferramentas que ele havia emprestado, para uns trabalhos na nossa nova morada em Recoleta. E quando já ia me despedindo apareceu o Hernán, convidando para acompanhá-lo a um enterro que prometia ser uma bela festa.
Hernán era uma figura familiar no atelier, com seu bigodinho bem cuidado e seu ar de dândi, vestindo sempre um comprido sobretudo azul. Perguntei quem ia ser enterrado.
– É o funeral do Spiro Califórnia, último rei dos ciganos chilenos! – ele anunciou enfático.
Fazia poucos dias eu tinha lido na Biblioteca Nacional um texto do Papus que muito me impressionou, sobre os ciganos… Não pensei duas vezes, topei ir ao enterro do rei cigano. Mas não gostei, era balbúrdia e confusão demais pro meu gosto. Só que lá também pintou o Nilton „Orelhinha“. E ele conhecia o Hernán de uns eventos literários no I. Pedagógico. Na saída do enterro Nilton nos puxou para o quiosque da Nazaré, onde tinha um encontro marcado. E lá estávamos num papo furado qualquer, quando aparece o Jose Miguel, jogador de xadrez e amigo chileno, dos primeiros que fiz em Santiago. E me conta que naquela tarde se realizaria um torneio relâmpago no Club de Ajedrez Chile, com a participação do Presidente Allende.
Almoçamos no casino da UNCTAD, e de lá segui caminhando com Jose Miguel para o clube de xadrez. O clube ficava quase na esquina com a Alameda, numa paralela da calle Carmen, a meio caminho do La Moneda. Ainda era cedo e no clube havia apenas um pequeno grupo de aficionados em torno do mestre chileno P. Donoso, que analisava uma partida do seu manual de xadrez, publicado pela editorial Quimantu. Mas logo foram chegando em grande número os enxadristas, e se realizou o torneio pelo sistema suíço. Saiu vencedor René Letelier, depois de um final renhido contra V. Dalmau – um médico espanhol que veio ao Chile no barco Winnipeg, me contou Jose Miguel. O Presidente Allende teve um impedimento e não compareceu, frustrando as expectativas.
Ainda ficamos um tempo no clube, na roda que se formou em torno do mestre Letelier, que comentou sua vitória sobre Bobby Fischer em Mar del Plata, em começos de carreira do grão-mestre. E contou algumas histórias, entre elas seu encontro com o Che Guevara, quando foi jogar o Memorial Capablanca em Cuba.
– O senhor não me conhece – falou o Che, mas eu o conheço e admiro desde meus tempos de estudante, quando esteve na Argentina jogando torneios. Eu ia assistir as partidas e esperava que os mestres revelassem suas ideias, mas nenhum se dignava a isso. Apenas o senhor tomou seu tempo e me passou seus conhecimentos, por isto lhe estou muito agradecido…
Começava a escurecer, das janelas do clube de xadrez se avistava a Alameda lá em baixo e meu olhar acompanhou um passante, que se desviou para o canteiro central e foi urinar atrás de uma árvore. – Que tienes que hacer ahora? – me pergunta Jose Miguel. E me convida a ir com ele numa conferência no Instituto Alfa & Omega.
– Onde é que é isso? – falo mecanicamente, pensando na caminhada que teria pela frente até Recoleta.
– É logo ali na avenida Bulnes, umas quatro quadras daqui – diz Jose Miguel, estendendo o braço e apontando para os lados do La Moneda.
Fui lá com ele por falta de opção melhor, mas rendeu a grande surpresa do dia: o conferencista era o filósofo Ariel Gibramsalt, que eu não tinha mais visto depois da noite em que nos conhecemos, em Villavicencio.
Ariel discorreu sobre a escravidão, suas origens e seu desenvolvimento ao longo dos tempos.
Uma das ideias sugeridas por sua palestra é que a abolição da escravatura foi, na verdade, uma transformação, uma adaptação às novas contingências históricas e econômicas. Ou seja, um velho modelo de escravidão cedeu lugar a outro, mais moderno.
No começo do século XIX a Inglaterra era a nação que mais traficava com escravos africanos, e foram os enormes lucros auferidos por meio desse comércio infame que financiaram a revolução industrial na ilha britânica. Aí de repente o imperialismo inglês passou a condenar o tráfico de escravos e pregar a abolição da escravatura, utilizando seu poder econômico para pressionar países dependentes, como o Brasil. Mas isso não se deu por uma questão de humanismo ou compaixão com o sofrimento alheio. Ariel Gibramsalt mostrou que foi o deus Dinheiro quem ditou a pauta da abolição. Com o avanço acelerado do processo industrial e o surgimento de novas máquinas capazes de substituir o trabalho braçal humano, surgiu nas primeiras fábricas britânicas uma nova evidência: trabalhadores assalariados eram mais rentáveis e custavam menos que os escravos (que tinham que ser alimentados e cuidados para poderem trabalhar).
Por isso os ingleses passaram a forçar a abolição da escravatura em toda parte, combatendo ao mesmo tempo a concorrência „desleal“ das nações escravocratas aos seus produtos. Então, com a guerra de Secessão nos EUA, se consolidou a vitória do novo modelo de produção capitalista – que vigora a partir de mediados do séc. XIX – sobre o modelo anterior escravocrata.
Antes da revolução industrial o trabalho braçal – p. ex. na produção de alimentos – era mal visto, era algo indigno, coisa de servos e escravos, quem era nobre ou fidalgo não sujava as mãos e se dedicava às carreiras militares ou eclesiásticas. Com o advento dos assalariados o conceito de trabalho sofreu uma transformação radical, passou a ser louvado como um bem maior da existência humana. E às vezes com cínica e brutal ironia, como na entrada dos campos de extermínio nazista, onde se lia: Arbeit macht frei, ou seja: O trabalho liberta.