Vive-se em cultura barulhenta e desassossego. Há dias, perguntei a um amigo inteligente para retratar a sociedade atual. Sugeriu cultura desagregada. E levou-me a pensar no puzzle de peças desarrumadas. Vive-se numa cultura de ruídos, barulhenta e fragmentada. O psiquiatra Enrique Rojas, no tempo dos alimentos light, recorreu ao termo “homem light”, no sentido de que alguns humanos se descarregam dos valores e sentidos de vida permanentes e ficam esvaziados de humanidade. Seriam como açúcar, café, bebidas sem substância do produto. Teríamos o paradoxo do homem light, sem humanidade. Chegamos à ilusão de sentido de vida com o absurdo de deitar fora o bebé e guardar a água suja do banho.
O conceito da modernidade líquida foi cunhado por Zigmunt Bauman nos anos 60 do século passado; de cultura sem valor sustentável e firme. A cultura atual leva muitos a mudar de moldes ao ritmo veloz das informações e teorias sucessivas e contraditórias. Este tipo de pensar humano amolda-se a toda a vasilha, ideologia, erro, interesse e questão fraturante; como o líquido toma a forma dos copos, pratos, sacos de plástico; estes homens amoldam-se a todos os estilos de viver e vidas sem sentido, confinadas aos tempos, e aos espaços sem horizonte infinito da integridade.
O que mais impressiona é a facilidade com que as pessoas se deixam condicionar e manipular como robots que se submetem cada vez mais a condicionamentos sufocantes. O panorama está bem descrito por George Orwell no 1984 e a sua leitura descreve a sociedade da pós-modernidade e pós-verdade com os slogans desse livro: «guerra é paz; liberdade é escravatura; ignorância é força». Cada vez mais pessoas, famílias, grupos, partidos e etnias passam por crises e sofrimentos e não encontram facilidade para pensar e discernir com acerto alguma saída de alívio, e sentido com paz. Ficam antes confusas, agitadas e cansadas.
Tudo se move com rapidez incrível, tudo cansa e já nem se dispõe de tempo para encontrar algum remédio e alívio. As crises e os problemas irrompem em turbilhão e os labirintos causam maior ansiedade e desarrumação de opiniões. Os armazéns estão cheios de fragmentos confusos de informação e comentários ideológicos, desligados de sentido de vida, e não dão paz nem alegria.
Os filósofos e estudiosos das ciências humanas correm atrás desses armazéns de dados do passado e do presente, mediante a inteligência artificial, na esperança de inventar teorias e métodos para pôr um pouco de ordem e de sentido no sótão das culturas. Quando pensam que conseguem, surge novo turbilhão globalizado. Sem tempo para discernir nem para dormir um sono reparador. Mergulham na cultura do absurdo e da morte que ensombrou o século XX com teorias que pareciam resolver as crises e os sofrimentos humanos; e apenas multiplicaram as guerras e as mortes, matando saudáveis e sofredores.
A sociedade já se terá cansado de desconstruir e destruir coisas boas em vez de reparar as destruídas? Ou estamos a sofrer novo wokismo como a Revolução Francesa que, só em Paris, pôs à venda oito belas igrejas medievais, demolidas a seguir para pedreiras?
Um autor mais recente, Byung-Chul Han, cunhou, precisamente, o conceito de sociedade do cansaço, em que vivemos, a da pressa em enriquecer, empreender à grande, em mecanizar pessoas em projetos colossais, programas de lucro rápido, à custa de muito trabalho, agitação, sucesso ilusório, medido pelo dinheiro e pela destruição. E o dinheiro para menos bolsos, tirado a mais pobres dizimados pela miséria. Em vez de paz Shalom e integridade, mais violência; em vez de liberdade, mais tirania, em vez de verdade, mais ilusões.
A depressão galopante tenta aliviar-se a consumir produtos de doença e morte. Como sair das armadilhas? Onde encontrar algo de sólido, algo de sentido pleno; onde o Shalom de paz interior e relacional que repare, restaure e faça renascer o homem novo, como Jesus anunciou a Nicodemos, para fazer parte do Reino de Deus?
A solução estará fora do Cristianismo, como pretendem alguns pensadores, de hoje e ontem, de outras culturas e religiões? Enaltecer as leis e princípios religiosos e sabedoria de culturas e religiões do mundo antigo e moderno, e rejeitar o Cristianismo não é ciência nem religião, é ideologia. Fecha-se uma porta e faz-se regredir a cultura de sentido cristão.
Num destes dias da Quarema, os textos louvavam as leis sábias do povo de Deus do Antigo Testamento, superiores a todas as leis doutros povos. E, contudo, essas leis não eram perfeitas, mas Jesus foi claro: não vim revogar as leis antigas da Bíblia. Eu vim completá-las, aperfeiçoá-las. São mandamentos para praticar e ensinar (cf. Mt. 5,17-19) como leis do Reino de Deus. E o próprio Cristo as praticou, como vontade do Pai, e as ensinou no seu Evangelho. Não há teorias nem ideologias substitutas.
Dentro de dois dias é o Dia Internacional da Mulher e convém lembrar que nenhuma religião dignificou tanto a mulher como o Cristianismo. E esse dia coincide com o dia de S. João de Deus, conhecido como o homem que fazia o bem, pediu a todos para fazerem o bem e se o fizessem faziam bem a si mesmos; ficou, também, conhecido pelo muito que fez e levou a fazer, para dignificar as mulheres em risco de se esquecer da sua dignidade. Foi um ferido curado pela misericórdia de Cristo que se tornou curador doutros feridos e, de entre eles, tantas mulheres feridas na sua dignidade.