Skip to content

A guardiã da janela

  • Março 15, 2024
  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Fátima Fonseca

Naquela rua todos conheciam a D. Bibi há muitos anos. Quando pequenina, ao chegar da escola, punha- se logo à janela do rés- do- chão onde vivia, a ver quem passava, e fascinada, olhava o céu por entre as árvores, as nuvens e os aviões e contava as diferentes cores das folhas das árvores onde o sol batia. Sonhava voar um dia, céu fora, e visitar terras distantes…

A seu lado, a mãe apanhava malhas das meias de vidro das clientes com uma pequena máquina, acionada por um motor elétrico e com uma agulha tipo croché de ponta fina.

Depois, quando crescera e saíra da escola no fim do liceu, como não tinha grandes posses, mas tinha mãos de ouro, também começara a fazer pequenos arranjos de costura para as clientes da mãe, sentada num banquinho a seu lado, ali junto à janela. Pouco depois, aprendera corte e costura num atelier de modista ao fundo da rua e passara a fazer vestidos, saias e calças para crianças e senhoras, naquele mesmo quarto, sempre junto à janela.

Até que um dia, estando à janela, conhecera um soldado, o Ivo, um belo rapagão, que ia a passar na rua e lhe pediu se tinha uma caixa de fósforos para acender um cigarro e ali ficara a dar dois dedos de conversa… O Ivo voltara a passar nos dias seguintes, sempre com o mesmo pedido, e ia ficando a conversar, até que, num certo dia 2 de Novembro, dia de Fiéis Defuntos, ali à janela, sob o olhar vigilante da mãe, começaram alegremente a namorar e Bibi saíra com ele pela primeira vez, a dar uma volta ao quarteirão, de mão na mão, e olhos nos olhos, muito apaixonados.

As copas das árvores então já mais crescidas, começavam a retirar-lhes um pouco da luz do sol, mas mãe e filha continuavam sempre a trabalhar junto à janela.

Bibi não conhecera o pai, pois era recém-nascida quando o pai morrera de paludismo em África, e por isso, sendo muito mimada e apegada a sua mãe, quando o jovem soldado a pedira em casamento, quisera continuar a viver naquela casa com a mãe.

Não era uma grande ideia – no entender e previsão do noivo, pois ‘quem casa quer casa’ – mas o dinheiro era escasso e como ele tinha bom feitio e a sogra também era boa pessoa, lá chegaram a algum entendimento… a sogra ficava com o quarto da janela para a frente, para continuar a atender clientes, e o casal tinha o resto da casa ao seu dispor…

Porém, ao fim de um ano, o marido, um tanto farto daquela vida a três, tão rotineira e sem grande graça, com a sogra sempre a dizer- lhe a toda a hora que não fumasse tanto, a pretexto de melhorarem as suas vidas e garantirem um futuro melhor, deixara a tropa, contactara uns amigos emigrados e propusera a Bibi viajarem até ao Brasil… Ela não quis, achou que era uma aventura com muito risco, chorou muito, dividida e desolada por ter de abandonar a mãe, mas aflita por ver o marido partir, e pediu – lhe para ir ele primeiro, que depois iria lá ter… só que, ao fim de seis meses de insistência para que ela fosse viver com ele, e ante os sucessivos adiamentos de Bibi, ele cansara- se, deixara de dar notícias e não mais voltara… Bibi nunca mais soube nada dele…mas imaginava que ele já teria uma nova família brasileira e compreendia que a culpa era só sua…

Tivera um grande desgosto e a mãe ainda tentara que ela fosse para o Brasil, dizendo- lhe que não duraria sempre e ela acabaria por ficar sozinha, mas Bibi não quis…

Entretanto o tempo passava, a mãe ia envelhecendo, e Bibi passara a apanhar malhas das meias de vidro na máquina da mãe, até que nos anos 60 a sua profissão acabou. Havia meias de nylon muito mais baratas, collants produzidos em série em novas fábricas, e já ninguém precisava de apanhadeiras de malhas…Ficara só com a costura, mas também esse mundo da moda estava bem diferente! O pronto-a-vestir invadira a cidade, transformara os hábitos das meninas novas e das senhoras e os arranjos davam- lhe pouco dinheiro.

Por essa altura já as copas das árvores, de tão grandes que estavam, tapavam o sol por completo…e já quase não se via sequer os aviões a passar…

Bibi ainda arranjara um emprego numa loja, mas pouco depois a mãe adoecera, era preciso cuidar dela e Bibi voltara para os seus pequenos trabalhos à janela, até que a mãe partira e ela ficara só…Fora um tempo doloroso e difícil! Nessa altura, escrevera ao marido para a última morada que vinha nas suas cartas e pedira-lhe perdão por não o ter acompanhado. Sentia necessidade de o fazer para se libertar daquele sentimento de culpa que guardava no fundo do coração! Claro que ele nunca respondeu e talvez até já tivesse um outro endereço… mas Bibi era uma mulher de fé, confiava no Bom Deus, e há muito que aceitava o que não podia mudar.

Compreendia que o fim da vida era algo natural e que um dia também ela partiria, mas sentada à janela, enquanto ouvia os aviões, e imaginava viagens que nunca faria, descobrira novas razões para viver: pouco a pouco, transformara- se como que numa guardiã da janela e do prédio, cuidadora dos vizinhos, quase assumindo a missão de protetora dos passantes da sua rua… e todos a conheciam, tal como ela a todos conhecia. Conheciam – na e gostavam dela, porque o seu sorriso sereno e doce, a palavra amiga, o conselho materno, e o seu cuidado e atenção a quem ali passava a tornavam uma presença inconfundível.

‘- Ó vizinha, então o seu menino teve boa nota no exame? Eu logo vi pela carinha de alegria! Olhe dê-lhe este chocolatinho da minha parte, sim? Rezei por ele… ai, que alegria… está aqui, está um doutor! Pensar que o conheci tão pequenino, de bibe a caminho da escola…’

‘- Ó Sr. Dr., desculpe, mas olhe que vem aí muita chuva, então esqueceu-se do seu chapéu-de-chuva? Leve o meu, por favor, que vem aí uma grande carga de água…’

‘- Psst, psst ó menina, desculpe, tome atenção, que o seu carro ficou com os piscas acesos… não sei se vai demorar, mas pode ficar sem bateria…’

E ia falando com cada vizinho, ou mesmo desconhecido e ninguém se importava.

De uma vez fora o sem-abrigo ali da rua que lhe pedira comida e ela logo lhe prometera uma sanduíche de queijo diária, uma sopa quente e uma peça de fruta.

De outra vez, foram os novos vizinhos chineses que tinham perdido a chave de casa e estavam aflitos à chuva e ela recebera-os prontamente em sua casa, e servira- lhes um chá quente até chegarem os bombeiros para lhes abrir a porta… enfim, D. Bibi estava sempre disponível para ajudar quem precisasse!

Contudo vivia com algum aperto e de forma austera naquela casa, pois a reforma da mãe era pequena e quando o senhorio lhe falou em deixar a casa e lhe quis aumentar a renda, ficou muito aflita e ofereceu- se para em troca ser ela a lavar as escadas e a despejar os caixotes de lixo. E o senhorio teve pena e aceitou.

Certo dia, D. Bibi acabava de chegar do cemitério, onde, como de costume, visitara a campa da mãe, por ser dia 2 de Novembro, e estava já a abrir a janela, quando viu um táxi parar mesmo à sua porta. Dele saiu um jovem elegante, bem vestido e de pasta na mão. Olhou em volta, certificando-se do número da porta e ao vê- la à janela, dirigiu- lhe a palavra.

‘- Desculpe, mora aqui a Sra. D. Bebiana Monteiro da Silva?’

Bibi até pensou que seria engano… mas não era…

Ao dizer- lhe que sim, o jovem apresentou-se como sendo um advogado que tinha assunto do seu interesse a tratar e pediu- lhe se podia entrar em sua casa. Com o coração a bater desalmadamente, D. Bibi foi abrir a porta e recebeu o elegante senhor, um tanto intrigada, convidando-o a sentar-se na salinha junto à janela.

O advogado explicou- lhe então que tinha uma carta de seu marido para ela, não sem antes lhe dizer, cautelosamente, que se tratava de um assunto delicado, que por certo a apanharia de surpresa…

Na verdade, vinha dar- lhe conhecimento da herança de seu marido, o Sr. Ivo Monteiro da Silva, recentemente falecido, que lhe deixara a ela, como única herdeira, todos os seus bens… e eram muitos…

Teria contudo de o acompanhar ao Brasil…e o bilhete já estava junto da carta!

Bibi, muito emocionada, olhou-o fixamente e gaguejou apenas:

-‘ Eu ???… mas eu não mereço…nem sei que lhe diga…’

 

 

Categorias

  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Cultura
  • História
  • Política
  • Religião
  • Social

Colunistas

A.Manuel dos Santos

Abigail Vilanova

Adilson Constâncio

Adriano Fiaschi

Agostinho dos Santos

Alexandra Sousa Duarte

Alexandre Esteves

Ana Esteves

Ana Maria Figueiredo

Ana Tápia

Artur Pereira dos Santos

Augusto Licks

Cecília Rezende

Cláudia Neves

Conceição Amaral de Castro Ramos

Conceição Castro Ramos

Conceição Gigante

Cristina Berrucho

Cristina Viana

Editoria

Editoria GPC

Emanuel do Carmo Oliveira

Enrique Villanueva

Ernesto Lauer

Fátima Fonseca

Flora Costa

Helena Atalaia

Isabel Alexandre

Isabel Carmo Pedro

Isabel Maria Vasco Costa

João Baptista Teixeira

João Marcelino

José Maria C. da Silva...

José Rogério Licks

Julie Machado

Luís Lynce de Faria

Luísa Loureiro

Manuel Matias

Manuela Figueiredo Martins

Maria Amália Abreu Rocha

Maria Caetano Conceição

Maria de Oliveira Esteves

Maria Guimarães

Maria Helena Guerra Pratas

Maria Helena Paes

Maria Romano

Maria Susana Mexia

Maria Teresa Conceição

Mariano Romeiro

Michele Bonheur

Miguel Ataíde

Notícias

Olavo de Carvalho

Padre Aires Gameiro

Padre Paulo Ricardo

Pedro Vaz Patto

Rita Gonçalves

Rosa Ventura

Rosário Martins

Rosarita dos Santos

Sérgio Alves de Oliveira

Sergio Manzione

Sofia Guedes e Graça Varão

Suzana Maria de Jesus

Vânia Figueiredo

Vera Luza

Verónica Teodósio

Virgínia Magriço

Grupo Progresso de Comunicação | Todos os direitos reservados

Desenvolvido por I9