– Como explicar o poder avassalador de Nietzsche sobre a cultura ocidental? – perguntou A. Gibramsalt.
Uma boa parte dos intelectuais mais importantes do nosso século foi por ele influenciada – basta lembrar Heidegger e Sartre, entre outros – e a lista de novos autores que bebem da sua fonte não para de crescer.
Sua mistura de boas e más ideias – coisas que ele escreve sobre as mulheres, por exemplo – vem quase sempre envolta numa fala instigante, que se não nos torna mais sábios, pelo menos nos ensina a pensar melhor…
(Toda observação da realidade implica uma falsificação… Esta ideia p. ex. foi colocada em pauta definitivamente décadas depois, com o Teorema da Incerteza da física quântica.)
Um exemplo do método de Nietzsche: na Gaia Ciência lemos que a experiência de querer que precede uma ação não implica uma relação causal real, ou seja, querer é epifenomenal com respeito a ação.
Não basta o sentimento da vontade para a suposição de causa e efeito.
E a fisiologia joga um papel forte na desconstrução nitzscheana de ideias tradicionais, como neste caso do conceito de Vontade. Em Além do Bem e do Mal o filósofo dionisíaco desmontou minuciosamente:
… em todo querer participam, primeiro, uma quantidade de sentimentos e sensações, p. ex. a sensação do estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, também a sensação desse „deixar“ e „ir“, e inclusive uma sensação muscular que, mesmo sem mover „braços e pernas“, se manifesta por uma espécie de hábito, no momento em que „queremos“. Portanto, sentir faz parte do querer. E em segundo lugar, também o pensar: todo ato da vontade tem um pensamento no comando – e não se creia que é possível separar tal pensamento do querer, sem extinguir a vontade. Mas em terceiro lugar, além deste complexo de sentir e pensar, a vontade se mostra também como um ímpeto emocional (Affekt) de comando. O que se chama de „livre-arbítrio“ é basicamente o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer: „eu sou livre, ele tem de obedecer“ – essa consciência faz parte de toda vontade. Um alguém que quer, comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele acredita que obedece.
Como jovem filólogo e discípulo de Schopenhauer – do qual mais tarde se distanciou -, Nietzsche mergulhou fundo nos estudos da Grécia antiga e fez interpretações cruciais, sobre as quais iria basear sua crítica da cultura estabelecida e sua proposta de uma nova filosofia de vida.
Já a imagem que Nietzsche se formou do budismo é incompleta, ela veio da leitura de uns poucos livros disponíveis na Europa em seu tempo de vida. O foco desses escritos está na apresentação de alguns conceitos e certas contingências sócio-históricas, mas nenhum deles tematiza a prática da meditação, sem a qual não se pode falar propriamente de budismo.
A partir dessa abordagem fragmentária foi elaborada sua visão da religião budista: niilista, pessimista, que nega a vida e não produz arte.
Num famoso fragmento Nietzsche afirma que poderia vir a ser o Buda da Europa, mas seria uma contrapartida do indiano. Porque seu caminho preconiza a vida, o prazer da existência, a criatividade artística, diz ele.
E o budismo seria o quietismo pessimista, o ódio pela vida, o anseio pelo nada.
– No entanto, Nietzsche nunca soube nem experienciou algo do budismo, além de umas poucas informações conceptuais – diz Gibramsalt.
E mal-entendeu o significado de Nirvana.
Não se trata de um anseio pelo nada, é a culminação de um longo trabalho interior, que dá como fruto o estado de consciência do Sunyata.
Nesse estado a pessoa experencia uma plenitude luminosa, que abarca todo o seu ser e de modo algum é a negação da vida. Mas para alcançá-lo se faz necessário aniquilar pensamentos, desejos, emoções, deter na mente toda atividade racional e conceptual.
Ou seja, de fato entra em jogo um esvaziamento essencial das coisas deste mundo, mas não se trata de uma aniquilação absoluta ou um nada, como foi interpretado nos estudos do século XIX.
Acontece que os orientalistas ocidentais se debruçaram sobre os cânones budistas mais antigos, querendo saber como o Gautama havia definido o que seja a eternidade, a verdade, o eu e o não-eu, o Nirvana…
E o que encontraram nos cânones foi sempre o silêncio do Buda, nunca respostas claras e definitivas para essas perguntas.
Ora, o caminho ensinado pelo Buda se baseia nas quatro verdades nobres, e tem como objetivo a cessação do sofrimento, essência de toda existência humana, que se repete nos ciclos do Samsara.
Naquele momento histórico da Índia, apenas a minoria dos brâmanes tinha acesso ao complexo conhecimento que conduz à libertação espiritual. E Buda quis simplificar e torná-lo acessível a todos, sem distinção de castas. Disso surgiu o Caminho das 8 Vias, destinado à grande massa da população, de gente simples e não afeita a especulações conceituais.
Ademais, é na meditação onde se manifesta o Sunyata e o ser alcança o Nirvana. E a meditação sempre é uma experiência individual, cada ser experencia algo diferente e intransferível, que não poder ser expressado por palavras.
Na verdade, a leitura feita por Nietzsche sobre a vida espiritual budista, nos textos de Oldenberg e outros, teve como objetivo enfatizar aspectos que ele pudesse instrumentalizar, na sua oposição ao cristianismo: tudo que o cristianismo pode oferecer são estados espirituais epileptoides, tidos nesta religião como a realização mais elevada.
(Outro equívoco recorrente é o que considera o budismo uma religião sem Deus, quando esse não nega nem afirma a existência de Deus, só que seu foco se concentra nos budas.)