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Atração do abismo

  • Março 25, 2024
  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Fátima Fonseca

Naquele fim de tarde outonal, Raimundo, o Sr. Embaixador- como todos ainda o tratavam- caminhava, arrastando os pés, talvez mais lentamente do que era seu hábito, de regresso à sua casa de praia, agora silenciosa, escura e vazia.

O café junto ao mar estava a fechar portas. Era ali que passava os seus dias: ali almoçava, lia o jornal, conversava um pouco com os empregados e outros clientes igualmente solitários, e só saía quando chegava a hora de encerramento.

Eram poucos os que ficavam no café até tão tarde. Os turistas e veraneantes já há muito tinham regressado à capital.

Restavam apenas os que ali viviam todo o ano…O Embaixador ainda tinha casa na cidade, mas preferia ficar por ali junto ao mar até chegar o inverno…

Naquele mesmo dia, um ano atrás, a sua mulher partira…e apesar de ter sido uma morte anunciada, tudo mudara desde então! Por isso, naquele fim de tarde, sentia de modo insistente o reavivar da dor ainda não pacificada…e perguntava a si próprio qual o sentido da sua vida… toda a tarde dera voltas à mesma ideia! Estava tão farto … já vivera tudo o que a vida lhe reservara – pensava de si para si- e agora, sem vontade de entrar em casa, sentindo como que uma súbita atração pelo abismo, de repente mudou de direção e encaminhou- se para as rochas… respirando o cheiro forte a maresia e deixando que o vento molhado lhe revolvesse o cabelo branco.

Raimundo cuidara de Ângela como uma mãe extremosa cuida de uma criança doente, um desvelo que a todos causara admiração, como se quisesse compensa-la de faltas passadas… Tinha arranjado uma cuidadora para ajudar na sua higiene nos últimos meses, mas era ele a presença carinhosa, atenta e constante. E já quase sempre a dormitar, sem conhecer as pessoas e sem memória, esquálida e mirrada, e em tudo dependente, Ângela abria os olhos, estendia-lhe a mão, sorria para o marido e por ele chamava a toda a hora: …’Mundi, Mundi, Mundi ‘…

Raimundo fora embaixador em diversos países, e Ângela deixara a sua própria carreira brilhante de jurista para o poder acompanhar, para onde quer que fosse enviado, até para locais de grande risco… tinham vivido os primeiros tempos da terrível guerra entre hutus e tutsis no Ruanda, nos anos 90, e assistido a vários golpes de estado no continente africano.

Centrado no seu eu, na sua carreira, e nas suas responsabilidades, Raimundo não dera conta de como sua mulher se sacrificara e se anulara pela vida fora; habituara-se simplesmente a ter Ângela, sempre vistosa e impecável, cumprindo o seu papel de mulher, companheira e anfitriã a seu lado, em todos os momentos de representação, sem se aperceber dos primeiros sinais de perda de memória e não compreendendo algumas das suas inesperadas atitudes … que tanto o irritavam!

Certa vez, soara o primeiro sinal grave de alarme, numa recepção em sua casa, quando Ângela, para espanto geral, aparecera toda despenteada e descalça a cumprimentar os convidados, dizendo que não encontrava os sapatos… de outra vez, desaparecera dos jardins, sentara-se a comer num banco da cozinha e não mais aparecera… durante uma importante recepção na Embaixada. E a suspeita de doença confirmara-se…

Contudo, a situação agravara-se mais rapidamente, quando o filho único – aquele filho tão desejado e tão tardio!- aos 20 e poucos anos, abandonara os estudos e a casa paterna, para desaparecer com amigos, arrastado para o mundo da droga…

Cansado dos frequentes roubos e das muitas mentiras do filho, envergonhado pelas vezes que fora a tribunal, certo dia, o Embaixador fechara – se no quarto com o filho, depois de mais uma forte ressaca, e levantando- o da cama pelos ombros, dera- lhe dois pares de estalos, abanara-o com força e gritara- lhe com firmeza que não estava disposto a sustentar um filho drogado, um ladrão, e um inútil, e que estava na hora de escolher, ou se deixava internar e tratar, ou saía de casa imediatamente… e o filho saiu mesmo, naquele mesmo dia, sem um beijo à mãe, sem uma palavra de despedida, nem um pedido de perdão …

Ângela, profundamente desgostosa e incapaz de lidar com a situação, afundara-se cada vez mais na doença … em breve começara a perder-se nas ruas, esquecia- se de tudo, mostrava grande apatia, não queria comer, nem já parecia saber tomar banho…

O Embaixador vira-se obrigado a reformar- se e começara o longo calvário de cuidar da mulher até à sua morte. Sentia necessidade de a compensar por toda uma vida demasiado dedicada ao trabalho, em que a mulher tivera de deixar o filho pequeno mais que uma vez entregue aos cuidados dos avós… talvez por isso, o filho também enveredara por maus caminhos… percebia agora que não bastava ter-lhe assegurado um bom colégio interno, nem a casa dos avós ao fim de semana… o filho tinha precisado de uns pais mais presentes… a mulher, por sua vez, sofrera muito com a separação do filho tão novo, mas não quisera abandonar o marido… sempre a carreira dele em primeiro lugar … a carreira, a carreira… e agora? Que lhe restava? Nada… ninguém… nunca mais soubera do filho! Ainda procurara falar com amigos dele, para o avisar da morte da mãe, mas não encontrara rasto …

 

A noite caíra… o céu enevoado não deixava ver estrela alguma…lá longe na escuridão do mar, viam-se uns pequenos pontos luminosos, barcos distantes…Debruçado sobre o paredão, Raimundo sentia a atração do abismo crescer, ao ver a espuma branca das ondas lá em baixo embatendo nas rochas… e um desejo de pôr fim a tudo…

‘Mundi! Mundi! Mundiii!!!’

Parecia- lhe que a mulher o chamava… e só pensava ‘ não tenho ninguém… não faço falta…ninguém dará pela minha falta…vou ter com ela…’

Amargurado e a custo, sentou- se no parapeito do paredão, olhou para o céu escuro… e no seu íntimo, de repente brotou a pergunta que ultimamente o voltara a assaltar com inusitada frequência … ‘ mas haverá um Deus lá em cima que se interesse por mim?’

Foi então que ouviu mesmo atrás de si alguém gritar ‘Pai! Pai! Não faças isso…’ e sentindo-se agarrado pelas costas, voltou-se e naquele homem magro e andrajoso reconheceu o rosto do filho perdido… abraçaram-se…chorando longamente, e por entre as nuvens uma lua cheia iluminou o caminho de regresso à casa da praia.

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