Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. (Clarice Lispector).
Na quietude do meu quarto, por vezes, antes de adormecer, remonto aos convívios diários que a internet proporciona através dos aplicativos. Amigos e colegas comemoram a passagem de mais uma data natalícia e merecem abundantes cumprimentos; nascimentos e casamentos são anunciados; formaturas, bodas e uma série de acontecimentos a todos gratificantes e dignos dos melhores elogios e felicitações.
E, de repente, aquilo que não gostamos de ler ou ouvir, a nós chega num súbito avassalador: a notícia do falecimento um querido familiar, amigo ou colega! Então, o sentimento de dor invade a alma, o coração e a angustia se instala. Tento entender, mas não consigo: ciclos da vida; a metamorfose entre a alegria e a tristeza, termos basilares da relação existencial.
Em Clarice Lispector encontrei lenitivo ao dilema da divagação: “viver ultrapassa qualquer entendimento”. Em Quintana, quem sabe o remédio: “Viver tão só de momentos/ Como essas nuvens no céu… E a rosa louca dos ventos/ Presa à copa do chapéu. / Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar. / Nada jamais continua, Tudo vai recomeçar! / E sem nenhuma lembrança/ Das outras vezes perdidas, / Atiro a rosa do sonho/ Nas tuas mãos distraídas…”
Da divagação fecho parêntesis e alço voo ao passado, porque recordar é preciso! Por lá tinha uns 10 anos de idade e, além do curso primário, estudava acordeom com a professora Joanita Finkler, que morava no piso superior do Banco Industrial e Comercial do Sul, por ser filha do gerente. Meu pai insistiu em ter o filho gaiteiro.
Naquele época muitos jovens, de ambos os sexos, estudavam gaita piano (ou apianada, assim diziam). As professoras – eram algumas: Joanita, Ivetinha Reis, Jussara Rosa, dona Gladys, entre outras, resolveram fazer um Festival de Gaitas no Clube 7 de Setembro. Eu era um principiante, mas fui convidado para tocar a música “Vacariana” com um seleto grupo de colegas.
Inúmeros ensaios aconteceram; o Renato (Gato Müller) e o irmão Roberto faziam mímicas de um último adeus, quando da apresentação da música Valsa da Despedida. Foi cômico e muito agradou. O Adel Boos, meu vizinho, filho da dona Naura e do seu Adelmo Boos, também estudava gaita, mas ainda não tinha o instrumento musical. Usava a minha e por isso sempre me dava carona de bicicleta, com o acordeom do porta-pacote. A noite do Festival foi um sucesso.
Ao lembrar do Adel, que entre nós deixou saudosa memória, enveredo por uma nova encruzilhada mental, para saudosamente alcançar a família dos meus antigos vizinhos. O seu Adelmo Boos era funcionário da Viação Férrea e casado com a dona Naura, filha do seu Valdivino (vô Nenê), homem que conheci e convivi por muitos anos, até o seu falecimento.
O vô Nenê era um homem de porte médio, franzino, cabelos brancos, invariavelmente à vista dos transeuntes pela Ramiro: de manhã sentava na área da casa e pela tarde na calçada fronteira. Conversava com todos; depois fiquei sabendo que ele emprestava pequenas quantias, principalmente aos empregados do Frigorífico Renner. Era “muito bom de coração”; por isso perdeu muito dinheiro. Todos os terrenos da casa do Dr. Mattana até o Kolberg e acima numa grande extensão da João Pessoa eram de sua propriedade. O único que conseguiu comprar um terreno dele foi justamente o doutor, onde edificou casa e consultório.
O casal Boos tinha uma filha, de nome Sarita: era professora primária. Recordo que ela casou com o Gaston Kremer e foi morar em Porto Alegre; ele era funcionário da empresa Garema, localizada na Avenida Farrapos, próxima da Estação Central de Porto Alegre. Eram os representantes exclusivos dos produtos Hering. Meu pai comprava muito desta empresa.
Sarita e Gaston tiveram dois filhos: o Gastonzinho e a Maria Helena, ambos advogados; ele em Porto Alegre e ela na praia de Pinhal. Conheci-os vinte anos passados. Gostaria de contar um fato hilariante e preocupante ao tempo: já casados, o casal vinha a Montenegro durante as férias de verão; nossa cidade, de tradição provinciana, não admitia certas posturas e vestimentas de pessoas adultas. O Gaston era acostumado com Porto Alegre, onde se admitia sair a vontade e de chinelos, para tomar uma cerveja num bar próximo.
Num sábado à tarde, ele tomou banho, botou uma camiseta e vestiu calção (largo e comprido), calçou chinelas e foi tomar uma cerveja no Café Ivo, junto da antiga rodoviária. O garçom o serviu; não demorou muito e o proprietário veio ter consigo, ponderando que, infelizmente, não poderia continuar a atendê-lo, por estar de calção e chinelos. Gaston terminou a cerveja, retirou-se e não voltou.
Assim era o comportamento e o pensamento predominante na nossa cidade de antigamente. Um guri só podia entrar no cinema de calça comprida, camisa e sapatos; dançar em clubes, só de gravata …