Em 7 de novembro de 1901, nasceu, no Rio de Janeiro, aquela que se tornaria uma das vozes líricas mais importantes da literatura brasileira e que, além de poeta, também era ensaísta, jornalista, tradutora, folclorista, professora e até pintora: Cecília Benevides de Carvalho Meireles, um verdadeiro orgulho nacional!
Cecília Meireles perdeu o pai antes de ela nascer e perdeu sua mãe quando a menina tinha somente três anos de idade; ela foi criada pela sua avó materna, Jacintha Garcia Benevides, natural da Ilha dos Açores, mas que já morava no Brasil há muitos anos. Cecília frequentou a Escola Normal e se formou professora, em 1917; a seguir, trabalhou no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, de 1930 a 1933, escrevendo todos os dias sobre educação.
Foi ela a responsável pela criação da primeira biblioteca infantil do país, em 1934, no Centro Cultural Infantil do Pavilhão Mourisco, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Um ano depois, foi convidada a lecionar Literatura Luso-brasileira e, logo após, Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal do Rio de Janeiro, onde trabalhou até 1938. Também lecionou Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
Retornando um pouco no tempo, em 1919, quando a jovem tinha apenas 18 anos de idade, ela publica Espectros, seu primeiro livro de poemas. Nessa época, esteve ligada à revista Festa, formada pelo grupo de escritores que faziam parte de uma corrente carioca do Modernismo brasileiro, também conhecida como “espiritualista”. Essa corrente caminhava longe dos passos do movimento modernista de São Paulo, o qual buscava a afirmação de uma identidade nacional e de inovações formais, enquanto esse movimento carioca pregava o fazer artístico e um diálogo com o pensamento filosófico, além do desejo por uma arte mais universalista.
Aos 23 anos de vida, portanto, em 1922, Cecília Meireles se casa com o artista plástico luso-brasileiro Fernando Correa Dias, com as quais teve três filhas; depois do falecimento do marido, a autora contai núpcias novamente, em 1940, com Heitor Grillo, professor e engenheiro agrônomo. No início dos anos 1920, ela publica os livros Nunca mais… e poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925); na mesma época, escreve os poemas do livro Cânticos, que só seria publicado em 1981; em 1938, publica Viagem no Brasil e, um ano depois, em Portugal; com este livro a autora ganha o prêmio de poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Logo em seguida, outros livros de poesia consagram, em definitivo, a carreira de Cecília como escritora, sendo os mais destacados: Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas (1945), Retrato natural (1947), Amor em Leonoreta (1951), Doze noturnos da Holanda e O aeronauta (1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Canções (1956), Metal rosicler (1960), Poemas escritos na Índia (1962) e Solombra (1963).
A seguir, em 1964, Cecília Meireles inaugurou uma nova fase na literatura infantil brasileira ao lançar uma coletânea de poemas para crianças, chamada de Ou Isto Ou Aquilo. Além da literatura, Cecília amava viajar, e especialmente para os dois países que a encantaram desde pequena, Portugal e Índia; o livro Poemas escritos na Índia é fruto de uma viagem que fez ao país em 1953, em que ela fala sobre a simplicidade do povo indiano e sua comunhão com a natureza.
Mais adiante, em 1964, ela confessa que “tem um vício terrível, o de gostar de gente; você acha que isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença.”, diz ela em um trecho de sua última entrevista. Em 9 de novembro de 1964, aos 63 anos, faleceu em sua cidade natal, vítima de um câncer de estômago; um ano depois, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da ABL (Academia Brasileira de Letras), pelo conjunto de sua obra.
A obra de Cecília é situada no que se chama de segunda fase do Modernismo brasileiro, a saber, o qual durou de 1930 a 1945, e cuja poesia é marcada pelo conflito existencial e pela reflexão sobre os problemas contemporâneos. Ainda, ao contrário dos modernistas de São Paulo da geração de 22, não há mais uma necessidade de chocar o público e a crítica, mas sim de criar uma obra mais madura, que leve adiante a liberdade de expressão, as questões universais da humanidade e os problemas do mundo contemporâneo; há, portanto, reflexões filosóficas, existenciais e sobre o próprio processo poético.
Cecília Meireles é a primeira mulher a ser considerada uma grande escritora da literatura brasileira. Sua obra é marcada pela riqueza da linguagem que explora símbolos e imagens; ao contrário do coloquialismo celebrado por seus contemporâneos, a autora prefere usar as palavras como se fazia na tradição lírica do passado – uma linguagem mais requintada.
Sua poesia, repleta de sonoridade, faz com que o leitor perceba o mundo de maneira sinestésica (onde o uso das palavras remete a diferentes ordens sensoriais, os cinco sentidos do corpo humano, para gerar um efeito especial no discurso). Essa talvez seja uma prova de que da influência dos poetas simbolistas que ela tanto admirava; suas palavras, assim como as de seus mestres, “mais sugerem do que descrevem”.
Embora não estivesse filiada a nenhum movimento literário, suas obras iniciais evidenciam o gosto pelo simbolismo (movimento literário do final do século XIX, marcado pelo pessimismo e pela visão subjetiva da realidade). Entre seus temas mais recorrentes estão a efemeridade do tempo, a transitoriedade da vida, a natureza, o ato da criação poética, a melancolia, a dor existencial, e as noções de perda amorosa, abandono e solidão. Precisamente, é sua experiência do vazio – a impossibilidade de comunicar-se com o mundo ao redor – que a faz moderna, já que é a modernidade que percebe o absurdo da existência e a falta de sentido da vida; são as relações entre o efêmero e o eterno que marcam a importância de sua escrita.
Nossa autora produziu mais de cinquenta obras, textos para gravação e filmagem com seus temas, e uma dúzia de homenagens e prêmios da crítica literária.
Passamos agora a uma breve análise de três poemas da autora; um deles é “Motivo”, o outro é “Retrato”, e finalmente o terceiro é “Ou isto ou aquilo” (de sua fase infantil).
1º Motivo (1939): Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta. / Irmão das coisas fugidias, / não sinto gozo nem tormento. / Atravesso noites e dias / no vento. / Se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me / desfaço, / – não sei, não sei. Não sei se fico / ou passo. / Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / – mais nada. //
Motivo é o primeiro poema do livro Viagem, publicado em 1939, época do modernismo; a composição se trata de um meta-poema, isto é, um texto que se volta sobre o seu próprio processo de construção.
A respeito do título, Motivo, convém dizer que para Cecília escrever e viver eram verbos que se misturavam: viver era ser poeta e ser poeta era viver. Escrever fazia parte da sua identidade e era uma condição essencial para a vida da escritora, é o que se constata especialmente no verso: “Não sou alegre nem sou triste: sou poeta”.
O poema trata da transitoriedade da vida, muitas vezes com certo grau de melancolia, apesar da extrema delicadeza; os versos são construídos a partir de antíteses, ideias opostas (alegre e triste; noites e dias; desmorono e edifico; permaneço e desfaço; fico e passo).
Uma outra característica marcante é a musicalidade da escrita – a lírica contém rimas, mas não com o rigor da métrica rígida (existe e triste; fugidias e dias; edifico e fico; tudo e mudo). Observamos também que praticamente todos os verbos do poema estão no tempo presente do indicativo, o que demonstra que Cecília pretendia evocar o aqui e o agora.
2º poema, Retrato: Eu não tinha este rosto de hoje, /Assim calmo, assim triste, assim magro, / Nem estes olhos tão vazios, /Nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas; / Eu não tinha este coração / Que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança, / Tão simples, tão certa, tão fácil: / – Em que espelho ficou perdida / a minha face? //
O título do poema evoca uma imagem congelada, cristalizada, parada no tempo e no espaço; os versos se referem tanto à aparência física (as feições do rosto e do corpo), como também à angústia existencial interior, motivada pela noção da passagem do tempo. Observamos ao longo dos versos os sentimentos de melancolia, angústia e solidão já característicos da poética de Cecília. Vemos também a tristeza manifestada pela consciência tardia da transitoriedade da vida (“Eu não me dei por essa mudança”).
A velhice se nota também a partir da degeneração do corpo; o movimento apresentado nos versos acompanha o decorrer dos dias, no sentido da vida para a morte (a mão que perde a força, se torna fria e morta). O último verso, muito poderoso, sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a essência daquele que se olha no retrato se perdeu? A propósito, Retrato é dos poemas mais celebrados de Cecília Meireles.
3º poema: Ou isto ou aquilo: Ou se tem chuva e não se tem sol, / ou se tem sol e não se tem chuva! / Ou se calça a luva e não se põe o anel, / ou se põe o anel e não se calça a luva! / Quem sobe nos ares não fica no chão, / quem fica no chão não sobe nos ares. / É uma grande pena que não se possa / estar ao mesmo tempo nos dois lugares! / Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, / ou compro o doce e gasto o dinheiro. / Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo… / e vivo escolhendo o dia inteiro! / Não sei se brinco, não sei se estudo, / se saio correndo ou fico tranquilo. /Mas não consegui entender ainda / qual é melhor: se é isto ou aquilo. //
Ou isto ou aquilo é um exemplar da poesia voltada para o público infantil – Cecília foi professora de escola, por isso esteve bastante familiarizada com o universo das crianças. O poema acima é tão importante que chega a dar nome ao livro que reúne 57 poemas; lançado em 1964, a obra Ou isto ou aquilo é um clássico que vem percorrendo gerações. Nos versos do poema encontramos a questão da dúvida, da incerteza, nós, adultos, identificamo-nos com a condição indecisa da criança. O poema ensina o imperativo da escolha: escolher é sempre perder, ter um algo significa necessariamente não poder ter outra coisa; os exemplos cotidianos, práticos e ilustrativos (como o do anel e o da luva) servem para ensinar uma lição essencial para o resto da vida: infelizmente, muitas vezes é necessário sacrificar uma coisa em nome de outra.
A autora convive com as palavras de uma maneira lúdica e natural e pretende se aproximar ao máximo do universo da infância.
Pois muito bem, terminamos aqui nosso ensaio sobre a poesia de Cecília Meireles; atrevo a expor o título – O Motivo de Cecília – porque a poesia desta autora nos permite com sua franqueza e proximidade; vou utilizar a frase com a qual o crítico literário Otto Maria Carpeaux a definiu : “A poesia de Cecília Meireles, embora pertencendo a nós e ao nosso mundo, é uma poesia de perfeição intemporal.”