O Eng. Aguiar chegou a casa cansado e preocupado. Lá fora o mundo estava bem perigoso, mas a política do seu país também estava complicada!
Sentia- se acabrunhado naquele fim de tarde. A caminho dos 60 anos com um filho ainda tão novo, muitas vezes se via como um pai velho…mas casara tarde e aquele rapazinho tinha sido tão desejado…
Tudo o que mais ansiava na vida era poder criar o Vasco, seu único filho, em paz, e dar – lhe uma boa educação, para que ele viesse a ser um homem fiel aos seus princípios, honesto e bom, feliz e útil ao seu país, mas as recentes declarações do Ministério da Educação não o tranquilizavam… este ano até tinham proibido presépios na escola do filho para não ofender alunos não – cristãos … aquele conceito de escola laica mais a história das novas ideologias com doutrinação de novas ideias desde tenra idade e casas de banho comuns para rapazes e raparigas estava a provocar -lhe grande inquietação … teriam de o mudar de escola? Já estava decidido a falar com outros pais… de certeza haveria mais gente preocupada e com um mínimo de bom senso…
À hora do jantar, naquele último dia de aulas, era suposto o filho Vasco mostrar-se muito feliz pelas férias de Natal que iam começar, mas tal não acontecia… o miúdo de onze anos estava tristonho e calado; à entrada em casa, a mulher segredou ao marido que o filho tinha algo para contar…e por fim, Vasco abriu- se e lá falou das suas mágoas, enquanto a mãe preparava a mesa:
- Pai, hoje na escola chamaram-me parvo e outros nomes piores por na nossa casa fazermos presépio e festejarmos o Natal desta maneira…
- E tu que respondeste a esses teus colegas?
- Disse que somos católicos… e eles riram- se e perguntaram- me por que razão acreditamos em Deus e celebramos o nascimento deste Menino Jesus… mas estavam outros mais velhos a rir e eu tive vergonha e não fui capaz de responder-lhes assim tão bem…só um colega meu estrangeiro e muçulmano é que à saída da escola me veio dar um abraço e disse- me que é meu amigo e também acredita em Deus…
- Não te preocupes, meu filho! Que bom encontrares alguém que não sendo católico te respeita e apoia…mas olha, acho que chegou a altura de te contar uma história verdadeira e vais perceber por que razão o pai e a mãe acreditam em Deus… Era uma vez um miúdo que nasceu com problemas sérios de saúde…passava as tardes em casa de uns vizinhos velhotes muito simpáticos a quem chamava avó ‘Tata Doche’ e avô ‘Xadez’, porque os pais dele não tinham família naquela cidade que os pudesse ajudar…
- Ahh mas o pai está a contar-me a sua história? E são aqueles seus avós, meus bisavós, que estão ali nas fotos por cima da lareira mesmo ao lado do presépio, não são?
- Sim, exatamente…mas deixa- me contar tudo o que ainda não sabes, meu filho!
A verdade é que aquele menino era um menino especial! À nascença tinha tido uma grande infeção de nariz, olhos e ouvidos, que provocara operações e muitos tratamentos em internamento prolongado; a família muito pobre, e com pai desconhecido, acabara por deixá-lo abandonado no hospital; depois de ser levado para uma espécie de casa que acolhe meninos sem família, apareceu lá um casal que não tinha filhos e quis adoptar aquele menino… que era eu, sim, era eu! E esse jovem casal foi viver no prédio e andar, mesmo ao lado de uns vizinhos simpáticos …
Vasco seguia atentamente e de olhos muito abertos a narrativa do pai…sem interromper!
- Um dia, era ele ainda pequenino, chorava desalmadamente… a vizinha, cheia de pena, bateu à porta e perguntou se podia ser útil. E foi! A mãe daquele menino estava num desespero próprio da sua falta de experiência…O pequenito calou- se ao colo dela; com uma canção de embalar acalmou-o e depois, devagarinho, brincando, sorrindo e distraindo-o com molas de roupa coloridas, lá conseguiu dar-lhe tudo a comer, o que ele anteriormente cuspia e não queria…
Aos poucos foi – se criando assim uma grande amizade entre os vizinhos do mesmo andar, e sempre que os pais daquele menino precisavam, recorriam aqueles ‘ avós’ sem filhos e sem netos, já reformados, com tempo livre e sobretudo com um grande coração e cheios de boa vontade e carinho.
Quando chegou a altura das sopas, ele só gostava mesmo da sopa daquela ‘avó’… que sempre juntava batata-doce e coentros ao espinafre e à cenoura… e o bebé comia tudo! Era a avó da batata-doce… que fazia uns purés deliciosos para aquele menino, por isso ele começou a chamá- la ‘Tata Doche’ quando aprendeu a falar…
Mais tarde, na escolinha do bairro, muitas vezes eram aqueles ‘avós emprestados’ que o iam levar e buscar, quando os pais não podiam.
O rapazinho era bonzinho, um autêntico doce… porém, já na Primária, as suas dificuldades tornaram- se mais visíveis…não ia bem na escola, no final do primeiro ano não sabia ler, nem escrever, nem aprendia a tabuada e começou a ficar nitidamente atrasado; também não tinha jeito nenhum para desportos; em breve teve de passar a usar óculos com lentes grossas e aparelhos nos ouvidos …e como há muito não ouvia bem, pronunciava mal as palavras e alguns colegas riam- se dele… contudo – como que por magia!- já no segundo ano, a partir do momento em que começara a aprender a jogar xadrez com aquele avô com uma paciência maior que a sua longa barba branca (parecia um missionário!), tudo melhorou na escola…o avô fazia alguma batota ‘doce’ para ele ganhar e assim ele aprendera o sabor da vitória, ganhara capacidade de concentração, treino de raciocínio, empenho, confiança nas suas capacidades e notavam – se grandes progressos na escola!
Também aquela avó o ajudava no português e lia com ele muitas histórias de que ele muito gostava…
Aquele menino finalmente estava no caminho da superação das suas dificuldades… talvez por isso cada vez era maior a loucura e amizade por aqueles vizinhos do lado…a quem chamava ‘avós’…e a cuja porta estava sempre a bater…’podemos jogar, avô Xadez?’’Há uma sopinha para mim, Tata Doche?’
Certa noite, os pais do menino foram bater-lhes à porta e contaram que tinham recebido um prémio da empresa alemã onde trabalhavam… uma viagem à Alemanha para visitarem a fábrica-mãe, só que não poderiam levar o filho e … como não tinham mais família, perguntaram- lhes se porventura os vizinhos se importariam de ficar com ele durante cinco dias…entre Natal e passagem de ano…os ‘avós adotivos’ entreolharam- se e muito contentes, sem sombra de desacordo, de imediato lhes responderam afirmativamente… e assim, como combinado, o menino foi para casa da Avó’ Tata Doche’ e do Avô ‘Xadez’ no dia seguinte ao dia de Natal e os pais apanharam o avião para a Alemanha. Tudo parecia bem planeado para poder correr bem!
Porém houve na altura um intenso nevão na zona para onde eles iam. Alugaram um carro à saída do aeroporto de Munique… era de noite, e apesar de irem devagar, como a visibilidade era quase nula, tiveram um grave acidente de automóvel… o pai morreu logo, mas a mãe escapou apesar de muito ferida… bem, e para encurtar a história, digo-te apenas que da empresa avisaram aqueles vizinhos, único contacto encontrado na carteira do pai, e o menino ficou por isso a viver em casa da ‘avó Tata Doche e do avô Xadez ‘ muito, muito tempo… até a mãe do menino voltar e poder tomar conta dele, o que levou mais de um ano e foi muito difícil para ela.
Eles foram por isso, como calculas, o grande apoio da minha mãe e do menino que eu era… sem eles eu não seria ninguém… foram como uns pais muito dedicados!
- Ó pai, mas nunca me tinha contado nada… coitadinho do pai… e então se tantas coisas más lhe aconteceram, por que acredita em Deus e diz que Ele é tão Bom???
- Meu querido Vasco, não te contei antes porque esperava que crescesses para te explicar tudo isto… na verdade, sinto- me muito agradecido! Sei que Deus me levou sempre ao colo desde bebé… primeiro colocou junto de mim aqueles pais que me acolheram nos braços e em sua casa, me adoptaram e me deram os cuidados que um bebé precisa – casa, carinho, conforto… depois Deus deu- me estes vizinhos extraordinários que foram meus avós, meus pais, me educaram, sustentaram, ampararam, consolaram e me encaminharam nos estudos e na profissão … eles foram a minha única e verdadeira família… a eles devo tudo o que sou e tenho! E quando partiram deste mundo, ainda me deixaram todos os seus bens! Eles foram para mim os Braços de Deus… ao cuidarem tão bem de mim…percebes agora por que razão somos crentes??? E todos os anos no Natal me revejo neste Menino que veio à terra sem nada … mas tão amado por Seus Pais e que é o Filho de Deus! Também eu que nasci sem nada, sempre me senti muito amado desde sempre…
- Pai, mas que história tão bonita… – comentou Vasco, quase em lágrimas, abraçando o pai. Do outro lado da mesa, a mãe, comovida, contemplava a cena, e fixando um olhar de ternura no marido só pensava:’ … realmente ele nunca viu nem ouviu bem para fora, mas sempre viu e ouviu muito bem para dentro…’ A certa altura, a mãe sugeriu que durante aquelas férias, poderiam convidar o tal menino muçulmano, estrangeiro, para vir brincar com o Vasco e para se conhecerem. E o Vasco ficou muito contente com a ideia que o pai também logo apoiou. Nessa noite a conversa durou uma eternidade sem que o sono chegasse. Vasco não parava de fazer perguntas aos pais. Até o presépio da família Aguiar parecia diferente e mais luminoso …