Transcorria o ano de 1968 e o Internacional ainda não tinha seu estádio. Tio Simões, de saudosa memória, era torcedor do Internacional, mas tinha três cadeiras cativas na área de associados do Grêmio, o arquirrival, no estádio Olímpico.
Ele me levou ao jogo que decidiria o campeonato daquele ano. Tomamos assento na torcida do Grêmio … Meu tio era, naquele momento, um quinta-coluna, cuja preferência clubística tinha de permanecer incógnita. Se o seu Internacional marcasse um gol ele não poderia comemorar. Se não praguejasse, pelo menos deveria ostentar um ar contrafeito.
Rádio de pilha colado ao ouvido, ele escutaria o narrador gritar gol quatro vezes: Joãozinho, Volmir e Alcindo, duas vezes. Pulei a cada gol. Foi uma partida inesquecível. Tio Simões disfarçava seu desapontamento tanto quanto podia e no quarto gol gritei para um cidadão ao meu lado, gremista de quatro costados: “Meu tio está de cabeça inchada …” Ele deve ter gelado. Eu acabara de denunciar a presença de um adversário nas hostes gremistas. O cidadão felizmente compreendeu o embaraço e fez-se de desentendido, para sorte do meu histórico de mancadas vida afora sem maiores consequências.
A despeito da minha imprudente e estulta inocência, não mentira. Apenas falara o que não devia, num tempo em que não fazia a menor ideia do que o fanatismo pode causar. Por vezes a verdade pode custar caro.
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Há nas primeiras páginas de “Versos Satânicos” uma citação extraída de “História do diabo”, de Daniel Defoe, aquele mesmo de “Robinson Crusoé”: “Satã, confinado assim à instável condição de vagabundo, sem rumo, não possui morada certa; pois embora tenha, como consequência de sua natureza angélica, uma espécie de império na vastidão líquida ou no ar, decerto faz parte de seu castigo não ter […] um lugar em que possa pousar a sola do pé”.
Como se sabe, Salman Rushdie passou por muitos anos sem poder repousar a sola dos pés. Nascido em família muçulmana, foi condenado à morte por Khomeini e a partir de então perseguido por extremistas. Proibido de pisar na Índia, seu país natal, sob a alegação de que poderia provocar distúrbios religiosos, nem mesmo companhias aéreas o aceitavam como passageiro.
Soube da condenação através de uma ligação telefônica: “Ah, não se preocupe muito, Khomeini sentencia o presidente dos Estados Unidos à morte toda sexta-feira”. O chiste não reduziu sua apreensão e longe estava de traduzir o drama que viveria. Até a revogação da fatwa Rushdie passou por diversos esconderijos e assumiu o pseudônimo Joseph Anton para lutar pela liberdade de expressão. Os versos lhe custaram caro.
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Desde que passei a analisar a podridão da política brasileira, infeliz e inegavelmente acelerada depois da redemocratização, o período da Lava Jato foi aquele que evocou nos cidadãos a maior esperança de um futuro com justiça. Se houve perseguição, parcialidade, erros técnicos, não sou o mais indicado para comentar, mas não dá pra esquecer que houve confissões arrasadoras de empresários e políticos, desnudando a prática porca de alguns pais da pátria.
Hipócritas que juravam amor aos pobres, destinados à sexta cova do oitavo círculo do inferno segundo Dante, farão companhia a Caifás, o sacerdote que empurrou Cristo para a morte sob a desculpa de que o fazia pelo bem de Israel.
Alguns intocáveis da política brasileira foram parar atrás das grades. A desfaçatez de se apresentarem como os maiores protetores do bem comum os transformara em mentiras sobre duas patas. Não passam de seres repulsivos, sequiosos por aplausos e prazeres.
Delações premiadas, como a do ex-senador Delcídio do Amaral em 2016 e do ex-ministro Antônio Palocci, foram mísseis no casco do poder. Porém, para desencanto dos que ainda sonham com um país digno, no ano passado Delcídio foi condenado em segunda instância por danos morais …
Assim, de grão em grão a galinha da impunidade mais uma vez vem enchendo o papo. Corruptos ora se dizem injustiçados e advogados de porta-de-cadeia, suspeitos de protegerem o crime organizado, se autoproclamam salvadores da democracia. Filhos diletos do pai da mentira.
No opúsculo “Mani Pulite – Lava Jato – Uma inevitável comparação”, Darci Rebelo abre um dos temas com uma citação lapidar:
Durante uma campanha de saúde pública de combate às moscas, na Itália, uma alta autoridade, ao fiscalizar uma localidade do interior da Itália, foi assediada por moscas por todos os lados e protestou: “Ma in questo comune non avete fatto la guerra alle mosche? E il podestá gli responde: “Si, Eccellenza, ma hanno vinto le mosche”.
Da minha ingenuidade aos dias de hoje, a verdade segue custando caro, quando deveria ser tão somente balsâmica, reparadora.
Manifestar-se livremente, direito intocável em uma sociedade que se pretende livre, pode hoje custar muito caro.
O sistema que liquidou a Lava Jato tem a sabedoria do inferno. E assim, pela maldade de muitos e a omissão de muitos mais, as moscas mais uma vez venceram.