A história de colar teses em portas e muros não é nova. Em 1517 Lutero pregou suas 95 teses na porta de uma igreja em Wittenberg, tomada pouco mais tarde, à revelia da Igreja Católica. Em dezembro de 1520 Lutero queimou uma bula papal e no mês seguinte foi excomungado por Leão X. A porta? Virou cinzas num incêndio em 1760. Aliás, poderiam ter construído outro templo para abrigar o túmulo do teólogo.
Recebi um cartaz grande com uma gravura de Marx, jovem, encimada pelo título “Baderna”, e as 11 teses de Marx sobre Feuerbach. Discípulo de Hegel, segundo li Feuerbach influenciaria Freud e Darwin, mas mereceria contestações do guru comunista. A última tese prega que “Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes maneiras. O que importa é mudá-lo”. Marx, portanto, parece qualificar os que o antecederam como diletantes.
O cartaz também mostra uma foto na qual o escritor e cineasta Guy Debord e amigos estão a fixar estas teses num muro de Paris. Assisti “A sociedade do espetáculo”, baseado no livro homônimo, que o próprio Debord dirigiu. O título é atraente e por isto também tenho o livro, mas confesso que tive dificuldades cognitivas. Trata-se de um circunlóquio e no fim fiquei com a sensação de que minha antena não alcançou a frequência. Ou bebi demais, ou de menos.
Debord criticou tanto o espetáculo difuso do capitalismo quanto o espetáculo concentrado do socialismo. Concentrou-se em discussões tipicamente marxistas, entretecendo as palavras dialética, burguesia e proletariado e sorvendo, penso eu, doses não homeopáticas do veneno da luta de classes. Suicidou-se os 62 anos.
O cartaz menciona o portal www.baderna.org, que não consegui acessar, e divulga livros como “Taz”, do anarquista Peter Wilson, “Guerrilha psíquica”, de Luther Blissett, pseudônimo multiusuário utilizado por ativistas, “Provos”, do psicodelista italiano Matteo Guarnaccia, e outros, alinhados com a ideia de resistência, contracultura, subversão contra o capitalismo, Black Bloc, desafio ao establishment, etc…
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Como quem procura o formigueiro a partir da trilha de suas operárias, meio mais efetivo para combatê-lo, ando sempre a buscar o nascedouro das ideias que considero perversas, o ninho das bizarrices, a rampa de lançamento da decadência humana. Há movimentos e razões muito intrincados e me faltam cultura e discernimento para tratar de um tema tão complexo como este com as próprias pernas.
Assim, busco oxigênio no balão dos pensadores mais notáveis e ao mesmo tempo identificados com a linha cristã. Aliás, mal entendo como uma editora católica pode dar-se ao desplante de publicar autores que a detratam. Ou é admissível que a Vozes tenha publicado “A essência do cristianismo”, de Feuerbach?
Na noite escura que temos atravessado, que se busque bússolas e faroletes para orientar nossa caminhada. Pessoas que tenham sólida formação moral e intelectual, que possam dissipar a densa neblina dos circunlóquios.
Sertillange é uma destas fontes de sabedoria a serviço da humanidade. Em sua obra “O mito moderno da ciência” ele lembra que a Grécia descobrira “as maravilhas da inteligência humana e tinha-se elevado a um grau de pureza e plenitude que constitui, a nossos olhos, um verdadeiro milagre”. Os gregos então mergulham numa humilhante decadência, causada pela “intelectualidade em excesso, que caracterizava o temperamento grego, com as suas consequências, a vertigem da discussão, o formalismo e a desagregação moral e social”.
Sertillange realça afinidades entre a herança grega e a sua França, que “durante dois séculos e meio tem feito da razão o valor supremo, e lhe tem prestado, sob o nome de Filosofia, e depois sob o nome de Ciência, um verdadeiro culto, chegando a colocá-la sobre os altares das suas igrejas”. Aos que pudessem negar o perigo da queda, por conta da vitalidade cultural que ainda se percebia na França, o autor registra que quando a Grécia foi vencida por Filipe da Macedônia, tinha Aristóteles e Demóstenes, e que um desconhecido contemporâneo esculpia a Vênus de Milo …
Nas páginas subsequentes, citando Descartes, o ex-seminarista Renan, Zola, Gide, Anatole, Rousseau, Nietzsche e outros tantos, Sertillange descortina a relação entre intelectualismo e derrocada e a apresenta como válida para todos os tempos e povos. Segundo Renan, “Temos a arte, a ciência e a filosofia, não precisamos de Igrejas”. Foi além: “Eu tinha necessidade de resumir a fé nova que substituía em mim o catolicismo”. Ou, segundo o historiador Taine: “Eles também (os intelectuais) constituem uma clerezia, pois que fazem dogmas e ensinam uma fé … A ciência é uma religião … tem os seus dogmas e reúne os seus fiéis numa grande igreja”.
O culto à ciência, ao moderno, a supervalorização da crítica e da compulsória negação de tudo, somados à confusão entre o cartesiano pensante e o pensador, acabaram por combater valores acumulados pela humanidade:.
Sertillange não deixa por menos: “Quando pretendem arrancar ao homem a religião, a moral, o passado, a arte e a inteligência, devemos, pura e simplesmente, responder: não! Prometeram-nos o “autêntico” e deram-nos “clichês”; prometeram-nos a liberdade e deram-nos a mais baixa escravidão; prometeram-nos o progresso e lançaram-nos numa corrida para a quantidade e para o nada”.
Faleceu em 1948. Sua previsão sobre a decadência francesa confirmou-se recentemente. A França tornou-se o primeiro país do mundo a tornar a interrupção voluntária da gravidez um direito constitucional. O presidente, orgulhoso, afirmou que lutará para que o direito se expanda pela União Européia e um letreiro luminoso na torre Eiffel resumia: “Meu corpo, minha escolha”.
Pura falácia. Na verdade um corpo carrega outro, vulnerável. E simplesmente decide matá-lo.