Ondina tinha sofrido uma grande cirurgia ao coração. Horas no bloco, dias no recobro, uma cicatriz de cima abaixo no peito magoado e retalhado, e por fim o regresso à sua casa vazia… depois, a convite de amigos generosos, e apenas com uma mala de fim de semana, mudara- se para um quarto em casa desses seus antigos colegas de Faculdade e amigos de longa data. Primeiro seria só por um mês para recuperar da operação ao coração.
Depois, vendo a sua debilidade, eles tinham sugerido mais um mês e ela agradecera… e ao fim de três meses, mais algum tempo, ‘só até te sentires recuperada e em forma!’ diziam eles… mas já passara um ano e ali continuava. Entretanto, ao fim desses três meses, Ondina pedira – lhes encarecidamente que aceitassem um acordo e assim combinaram que seria como o aluguer de um quarto e ela também contribuiria para as despesas das refeições.
Frente ao mar, mimada pelos amigos, naquela casinha confortável no meio do pinhal, ali na margem sul, muitas vezes deitada na cama e ainda com dores, Ondina ia revendo a sua vida ao som do marulhar das ondas…como tudo mudara! E dava consigo a pensar onde estava a Ondina vaidosa, orgulhosa, centrada no seu eu, nos seus trabalhos de investigação, nos seus caprichos e sucessos, elegante com roupa de marca, bem vestida e com cabelo pintado e sempre impecável??? onde estava aquela Ondina para quem o lema era ‘ você quer, você tem’?
Agora, com cabelo curto e todo branco, vestindo umas calças baratas da loja do chinês e um camisolão largo e sem graça, mas fácil de vestir, deixara de se preocupar com o seu exterior… apercebera- se de como o seu tempo de vida era um tesouro e o desperdiçara durante muito tempo…e as ondas pareciam segredar- lhe ao deitar e ao acordar ‘ Ondina, escuta bem: a tua vida é um milagre! Compensa agora o tempo perdido! Descobre como podes deixar um rasto de bem, ser útil aos outros…’
Pouco a pouco, Ondina ia- se transformando… tinha agora um coração diferente, maior e mais atento aos outros com quem se cruzava no passeio diário pela estrada fora… e começou a interrogar-se: a casa em Lisboa? O carro novo? As roupas elegantes? As joias? Para que quero tanta coisa inútil? Como distribuir os meus bens, já que não tenho família a quem dar???
Falando sobre estes assuntos com os seus amigos, eles propuseram apresentá-la ao pároco da igreja local e a um casal jovem – uma israelita casada com um palestiniano, pais de três pequenitos e a viverem na zona há alguns anos – que em conjunto estavam a promover uma obra social importante na zona de Setúbal.
Ondina entusiasmou- se! Quis conhecê- los, visitar as instalações e saber mais sobre aquele projeto! No dia seguinte, os amigos levaram-na ao local e apresentaram-na. Ondina foi recebida por todos de braços abertos! Precisavam tanto de ajudas…
Curiosamente, em conversa com eles, ficou sabendo que o nome do projeto era ‘Coração novo’ e daí terem pintado um enorme coração na porta do simples contentor – paredes meias com a igreja- onde trabalhavam, atendiam pessoas necessitadas e distribuíam bens de primeira necessidade!
Ondina começou a fazer trabalho de secretariado. Aparecia quase diariamente, sentia- se renovada, alegre e cada dia com mais forças.
Algum tempo depois, ofereceu- lhes o seu carro novo, vendeu parte dos seus bens e doou tudo à associação ‘Coração novo’. Com ajuda dos amigos, desmanchou a casa de Lisboa, distribuiu o recheio, pôs a casa em arrendamento e com esse dinheiro ia pagando suas despesas – agora bem reduzidas!- e partilhava com os mais necessitados que procuravam a associação.
Contudo nunca entrava na igreja… não era muito de igrejas e guardava alguns traumas de infância …achava o padre simpático, mas dizia não estar interessada…nem sequer lá entrara no Natal, apesar dos convites dos amigos. ‘Vão, vão vocês, que eu fico bem no meu quartinho… não se preocupem!’
Alguns dias depois porém, os amigos convidaram- na de novo, desta vez para assistir a um concerto. Seria num domingo à noite, dia de Reis. Ondina já nunca saía à noite por causa do frio, mas gostava muito de música, e aceitou o convite até porque os artistas eram precisamente a jovem israelita e o palestiniano com seus filhos. Bem agasalhada naquela noite fria, e na companhia dos amigos que tão bem a tinham acolhido e tratado, Ondina compareceu… e foi uma surpresa para ela, um deslumbramento…uma emoção maravilhosa, numa igreja cheia a transbordar, à luz de velas, ouvir aquelas três crianças com vozes lindíssimas a cantar ‘ O mio bambino caro’ ,’Ave Verum’ e ‘Ave Maria’ … acompanhadas pelos pais ao violino e piano.
Os amigos ficaram preocupados ao vê- la tão emocionada, com receio que fosse prejudicial ao seu coração… mas à saída , Ondina abraçou- os, profundamente reconhecida, dizendo- lhes apenas:’ Não se preocupem, queridos amigos! Estou melhor que nunca! Graças a vocês a minha vida mudou por completo… hoje sinto que tenho um coração novo… e quero voltar aqui à igreja um destes dias… hoje percebi que preciso falar com este padre…’