Não podemos expressar um “ai” no meio de tanta desgraça. Parte de nosso estado foi submergida de forma inapelável. Cidades destruídas, gente desabrigada e muitas mortes. A água, que é vida, descontrolada atraiçoa.
Na administração é clássica a figura de aparecimento de problemas quando os recursos baixam, quando tornam-se visíveis a sujeira e as pedras no leito do rio. Somente sob limitações enxergamos certos problemas, que até então estavam ocultos. Desdenhamos de sua solução porque, enfim, resolvê-los exige tirar o assento da cadeira e arregaçar as mangas.
Nossa casa ficou sem abastecimento de água por mais de uma semana. Racionamos o consumo de forma um tanto descuidada e nos últimos três dias deste período nem uma gota restava nas caixas d´água. Passamos a usar água de poço para lavar a louça. Nossa caçula emulava uma torneirinha com uma caneca e assim nos viramos. São cenas muito recentes, que aguilhoam minha consciência: como desperdiçamos água no dia a dia …
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Da porta pra fora tem sido inevitável confrontar a realidade. Nossa cidade fora invadida pelas águas em novembro do ano passado, quebrando o recorde anterior. Agora, em maio, este novo recorde foi superado em mais ou menos um metro! As perdas foram enormes e os atingidos baquearam. Além de perderem muitas coisas, algumas famílias quase tudo, entregam-se à dura tarefa de limpar casas e pátios. Não há como não solidarizar-se com esta gente que tira forças sabe Deus de onde.
No Vale do Taquari cidades praticamente desapareceram. Estradas foram bloqueadas, seja por queda de barreiras, seja porque trechos desapareceram, seja porque pontes sumiram. Na região da capital o drama não fica atrás. Pessoas sendo resgatadas em telhados e centenas de abrigos criados emergencialmente para prover um mínimo suporte para dezenas de milhares de flagelados.
Momentos como este são grandes oportunidades para afloramento do que temos de melhor. E de pior. De saques em casas abandonadas a roubo em lojas depredadas, até abusos e estupros em centros de acolhimento. Tais absurdos ficam apequenados pela solidariedade da sociedade, que se mobiliza para resgates e alimentação dos que perderam tudo e não têm uma rede de apoio familiar. Doações de toda sorte, de roupas, água, alimentos, cobertores e afins multiplicam-se, como um tsunami solidário, que evoca no país o sentimento um tanto perdido de fraternidade. É o lado admirável de uma sociedade castigada pela injustiça, pela carestia, pela impunidade dos ladrões da pátria.
São tantos canalhas no comando, que tacitamente subscrevem facções criminosas – como viciados em cocaína que não têm moral para criticar usuários de crack,- que haveria desabastecimento de guilhotinas se os revolucionários franceses exercessem sua crueldade justiceira na Terra Brasilis.
Mas voltemos ao drama do momento, quando as águas ainda não baixaram e ameaçam subir, num repique, em função das fortes chuvas das últimas 72 horas. Enquanto isto assistimos uma certa falta de coordenação, a despeito de tanta bravura e generosidade. Palavras, aliás, acima de coragem e solidariedade.
O que agora preocupa é o depois. Quando as águas baixarem e muitos flagelados, além de terem perdido móveis e eletrodomésticos, não tiverem para onde retornar. Sem contar os que não perderam suas casas, mas justificadamente temem que o fenômeno seja recorrente.
Neste país de desigualdades impudentes, governos quebrados, centralismo político, demagogia e promessas vazias, de onde tirar recursos para mover pessoas e negócios de áreas inundáveis? De onde sairá dinheiro para a construção de moradias, para a dragagem de rios, para grandes obras de contenção?
Já se especula que serão necessários mais de cem bilhões de reais para o soerguimento do estado. Por isto não dá para esquecer que o tal fundo partidário conta com mais de cinco bilhões para dissipação nas campanhas eleitorais que se aproximam. Alguém ouviu ao menos um sussurro de que os políticos poderiam abrir mão deste recurso – de resto absurdo desde sua concepção e recentemente ampliado em asqueroso patamar,- para auxiliar na recuperação? Nada! Reina o silêncio nas hostes da democracia de fachada.
Ideologias à parte, esta inundação é uma radiografia de nossa miséria, da vulnerabilidade de grande parcela do povo, da ineficiência do Estado e da ausência quase total de grandes administradores públicos. Os governos parecem agir sob impulso midiático. Tornou-se comum a divulgação com vídeos de conversas de prefeitos, governadores, ministros, como um vício de atribuir às palavras o poder que elas isoladamente não têm. Vestem quase todos os jalecos de Defesa Civil, como se isto por si só significasse que eles botam a mão-na-massa.
Escutei ontem a coletiva de imprensa concedida pelo governador gaúcho. Aguentei firme o desfile de um palavrório em que falta energia. Muito aplomb, com termos nada usuais, como reservação, extraordinariedade, … Me perdoem os contrários, mas um porre.
Uma postura de apresentador de televisão misturada com algo que parece uma mal disfarçada ambição por vôo político mais alto. Tem asas curtas, mas tudo é possível num país em que um condenado em todas as instâncias foi solto e ungido para o mais alto cargo do país.
Já não são poucos os que acreditam que ou o Brasil se refunda ou afunda. Os que defendem previdência única, o fim de imunidades, a instituição de mandatos para todas as funções públicas, o fim da farra dos cargos de confiança e o efetivo combate contra a impunidade. Afinal, se dizem cansados de tapas na cara.
Seja como for, a solidariedade demonstrada pelo povo brasileiro, desde o voluntariado em todos os níveis até as doações de gêneros, bens e dinheiro, tem o dom de mostrar que ainda há uma pátria debaixo de nossa ruína.