Recebi, pelo whatsapp, um mapa do Brasil mostrando que, nas regiões Norte e Nordeste, há mais beneficiários do Bolsa Família do que pessoas trabalhando com carteira de trabalho assinada. Essas regiões estão pintadas em vermelho no mapa. Não é difícil interpretar que se trata de uma avaliação com viés político e de amplo desconhecimento do que acontece naquela parte do país. O que vi foi o mapa do descaso com as duas regiões, o que ocorre desde as capitanias hereditárias, passando pelos ciclos da cana-de-açúcar e da borracha, e com o domínio das oligarquias.
A figura do “Coronel”, no Nordeste, sintetiza o dono de tudo e de todos; com poder de vida e morte, mas que precisava de mão-de-obra ignorante, porque fácil de dominar nas ideias, ou na força bruta. No Brasil colonial, os donos das sesmarias eram proprietários de imensas extensões de terra e formavam a elite da colônia e, não raro, ocupavam cargos políticos importantes, altos postos militares, o que garantia que seus interesses fossem preservados em desfavor da maioria da população. A região se transformou é um conjunto de fazendas onde muitos trabalham – e morrem – para alguns (bem) poucos se beneficiarem. É a exploração vil do ser humano.
A manutenção do domínio sobre as pessoas pode ser sustentada por vários eixos, sendo a fome e a ignorância os principais, seguidos de perto pelo medo, visto que criam a dependência de alguém, que virá “salvar” o povo. Portanto, manter a população na pobreza e na ignorância é uma condição básica para a criação dos currais eleitorais. As regiões Norte e Nordeste vivem até hoje sob esse repugnante domínio de novas oligarquias (descendestes das anteriores). Nas Alagoas, por exemplo, o ciclo da cana-de-açúcar não acabou e continua com sobrenomes famosos dominando a economia e a política, assim como faziam os sesmeiros.
Na Bahia, ainda se envia caminhões-pipa para os rincões distantes, ao invés de resolver o problema do abastecimento de água. O Maranhão, em destaque no tal mapa que recebi, é a terra com sobrenomes, também, famosos dominando a economia e a política que, mesmo com um presidente da república, governadores e senadores na família, nunca fizeram nada para mudar essa triste realidade, enquanto chafurdavam em suas várias fazendas. A ignorância, na qual o povo é mantido, é tão grande que um ex-presidente foi eleito senador pelo Amapá, terra onde ele só pisou para fazer campanha.
É de se destacar que por baixo da região Nordeste há alguns aquíferos com água para, pelo menos, minorar os graves problemas da região, seja na agricultura, seja no abastecimento para consumo humano. Para que a água seja extraída do solo e dessalinizada, se for o caso, é preciso investimentos, que, ao que me consta, nunca fizeram, de forma robusta, parte do Orçamento da União, muito menos dos estados e municípios. Falo aqui de montantes no patamar da exploração do petróleo. Nada se faz de concreto para buscar uma solução, que é a água, que irrigaria a terra e acabaria com a sede e muitas doenças, e com a pobreza também.
Se foi possível fazer perfurações profundas no pré-sal para extrair dinheiro, não se pode fazê-las para extrair água no Nordeste? Será que não? Para não ser injusto, a transposição do Rio São Francisco é uma obra gigantesca, porém não prioritária, que, quando, sabe-se lá, for concluída pode colaborar bastante com a falta de água e reduzir a “indústria da seca”, tão famosa. Um exemplo de sucesso é o que foi feito em Israel, onde o deserto de Neguev ocupa mais da metade do território do país e, hoje, tem uma farta produção agrícola, num país que consome 45% mais de água do que recebe das chuvas.
Segundo a Eco Nordeste (2020) 27,6% dos nordestinos ainda carecem de água em suas torneiras e 72% da população ainda não possui coleta de esgoto. No entanto, só são feitos alguns programas governamentais, de todas as esferas, que diminuem minimamente a necessidade real. Como disse algum político: “obras de saneamento ninguém vê”. Em 1909 foi criado Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e, nos anos 1950, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), no entanto, acabaram beneficiando a todos menos a quem precisa. Além disso, muitas foram as denúncias de corrupção nesses órgãos federais e direcionamentos políticos das obras, mas que nunca resolveram nada.
Muitas pessoas que desconhecem a realidade nordestina, ou só a veem através de estereótipos, nas novelas e filmes, acreditam que o Nordeste é só fornecedor de mão-de-obra desqualificada e, ainda, de enormes despesas para a União. A região Norte é só tratada como sendo a floresta Amazônica. Quantas vezes se ouve que “sem o Nordeste o país seria rico”. Ou “São Paulo trabalha para sustentar vagabundos”. Ou, ainda, as cíclicas ondas separatistas e ataques xenófobos e racistas. Quem são os ignorantes? Alguém acha que as pessoas querem ficar passando fome só para receber um mísero benefício? Alguém acha que não ter água ou esgoto é uma opção dos cidadãos? Quem não quer ter um emprego formal de carteira assinada?
A informalidade de trabalho é preponderante em regiões pobres, mas força e vontade de trabalho existem e continuam sendo exploradas pelos ditos empresários autodenominados de vetores de desenvolvimento. O mapa que vi mostra que o assistencialismo continua sendo a política pública mais aplicada, mas, na situação em que esse povo foi historicamente colocado, é necessário dar algum tipo de assistência mesmo. O Bolsa Família existe como consequência do descaso com essa população desde 1500, que precisa “sobreviver” para poder votar. Só para isso… Hoje o Bolsa Família tem dupla função: manter as pessoas vivas e mantê-las pobres, pois assim fica fácil dominá-las e manter os mesmos no poder.
Acrescenta-se, ainda, o desmonte da educação pública no Brasil iniciado em meados dos anos 1970. Até então, as escolas públicas eram de excelência e só ia para uma escola particular quem não conseguisse aprovação na pública. No entanto, isso não dava lucro e passou a ser explorado o “mercado da educação”. Ocorre que a “privatização” das escolas funciona como um filtro social, que mantém oportunidades só para quem tem dinheiro para pagar as altas mensalidades das boas escolas.
Quem não tem dinheiro vai para a escola pública sucateada e sai de lá sem saber escrever direito, e com um conteúdo educacional mínimo, sendo esse quadro favorecido pela política pública de não reprovar ninguém. Como alguém que estuda numa escola pública pode almejar uma vida igual a de quem fez uma escola particular e tem uma família que pode pagar por isso? Claro, existe a elite que sustenta as escolas particulares, que irão formar os futuros patrões, num ciclo que se repete há séculos.
As universidades federais e gratuitas estão com os estacionamentos cheios de veículos de alunos, oriundos das escolas particulares que, focadas apenas no vestibular, dão plenas condições a seus alunos terem um desempenho suficiente para deixar os das escolas públicas bem para trás. Com esse perverso sistema de ensino, mantém-se a pobreza e a ignorância da maior parte da população e, portanto, eleitores sedentos por algum tipo de ajuda. É natural que a região vote mais nos partidos de esquerda, pois vários outros partidos comandados por oligarcas colocaram e mantiveram o povo nessa miséria. Os nordestinos não são maus ou comunistas, ou qualquer besteira assim, mas vítimas.
Que bom seria se as pessoas, que ainda têm preconceitos infundados, pudessem enxergar o Nordeste como vítima histórica da colonização, de Coronéis e da politicagem baixa e vil, ao invés de acusá-lo de ser um peso morto. Se o restante do Brasil quisesse, de fato, acabar com as mazelas, que atacam os brasileiros viventes no nordeste do país, ao invés de criticar sem nenhuma base, ajudaria de forma concreta, assim como todos os estados da região Nordeste que enviaram ajuda de todos os tipos para minimizar a tragédia climática, que se abateu no Rio Grande do Sul. Com o desenvolvimento econômico vem a renda e a escola que faz pensar, mesmo com vieses ideológicos de qualquer matiz, mas preferíveis à ignorância. O conhecimento científico sem distorções político-partidários, de fato, liberta, mas qual “poderoso” quer isso? Qual político, salvo as honrosas exceções, pensa em alguém, além de si mesmo, e na próxima eleição? A “indústria da seca” permanece firme e forte e sem perspectiva de acabar.
Hoje se culpabiliza a região Nordeste por “atrapalhar” o país seja econômica, seja politicamente, ou por ser um curral eleitoral, mas pensar assim também é fruto de uma profunda ignorância. O Nordeste é vítima, não algoz! É preciso ter empatia e entender a dor do outro, que pode ser a de qualquer um a qualquer momento. Se os que pararam para desenhar o tal mapa, ou o aplaudem, passassem fome ou sede, ou algum trauma após uma tragédia, não aceitariam de bom grado uma ajuda para sair da miséria?
A questão é que ajuda assistencialista não pode permanecer para sempre, e ela só acaba com investimentos altos e prioritários. Se para os políticos esse tema não interessa, deveria interessar para aqueles que criticam e nada fazem de concreto para ajudar, pois é preciso se informar para além das redes sociais! Para evitar dar opiniões descabidas ou distorcidas, é preciso estudar a questão de fontes diversas e saber como se formou o país e como são os vários Brasis. O resto é preconceito, que é filho da ignorância.
Os xenófobos que se colocam como vítimas do Nordeste, de fato, só espalham opiniões rasas e distorcidas, e nada fazem além de espernear. O nortista e nordestino são vítimas sim, pois se tivessem, no mínimo, educação formal decente, água, assistência médica e trabalhos dignos, viveriam diferente e, por conseguinte, pensariam diferente, e desejariam diferente também. Bem, essa é apenas a minha opinião, que não pretende ser a verdade absoluta. Em que eu digo que é preciso interpretar de forma profunda os mapas e informações, que circulam desvairados e se afogam na parte mais rasa da ignorância.
Em 1953, Luiz Gonzaga e Zé Dantas compuseram a canção “Vozes da Seca” onde está tudo retratado com exatidão. O problema não é de hoje e, 71 anos depois da música ser lançada, tudo continua igual. Percebe? Aqui destaco as três primeiras estrofes:
Seu doutor, os nordestinos têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulistas nesta seca do sertão
Mas doutor, uma esmola a um homem que é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.
É por isso que pedimos proteção a vosmicê
Homem, por nós, escolhido, para as rédeas do poder
Pois doutor, dos vinte estados, temos oito sem chover
Veja bem, mais da metade do Brasil tá sem comer.
Dê serviço a nosso povo, encha os rios e barragens
Dê comida a preço bom, não esqueça a açudagem
Livre assim, nós da esmola, que no fim desta estiagem
Lhe pagamo inté os juros sem gastar nossa coragem
Sergio Manzione é psicólogo, apartidário, paulistano e mora em Salvador há mais de 30 anos.