A resistência no desfiladeiro das Termópilas, no ano 480 a.C., é uma das páginas mais heróicas da história. Decididos a morrerem causando o maior número possível de defecções na parte contrária, Leônidas e seus comandados escreveram um épico com a mais encarnada das tintas. Pretendiam resistir por pelo menos dez dias ao assédio. Sabiam que a derrota era inevitável mas derrogá-la era fundamental para que a defesa de Atenas fosse organizada.
O chefe invasor, Xerxes, tentou cooptar Leônidas, oferecendo ao rei espartano o governo de parte da Grécia. Em troca, pediu-lhe que depusesse as armas. Leônidas teria respondido “Vinde buscá-las!”, como óbvia e desafiadora recusa. A resistência foi abreviada pela traição de um grego, de nome Efialtes. Que ensinou aos persas um caminho secreto para atacar Leônidas e seus homens por trás, os encurralando sem apelação. A retaguarda grega percebeu tarde demais o que se passava e fugiu diante do ataque dos arqueiros. Leônidas reuniu seu conselho e proclamou que os aliados estavam liberados para partir – porque não sentia neles a necessária coragem,- e que ele, com seus trezentos homens, ali permaneceria sem desertar, caminho certo para a desonra, lutando até o fim para a glória dos tempos. Quanto a Efialtes, não teria recebido recompensa alguma porque a Pérsia foi derrotada, depois, na Batalha de Salamina. Refugiou-se na Tessália, onde segundo Heródoto teria sido assassinado por um motivo menor.
Em maio de 1624 os holandeses invadiram a Bahia com mais de vinte navios e aproximadamente 1600 marujos. Portugal encontrava-se sob o jugo espanhol nesta época, do qual só se libertará em 1640. Em 1625, quase um ano depois da invasão, uma esquadra luso-hispânica, com mais de cinqüenta navios e algo em torno de quinze mil homens, reverteu o quadro e em primeiro de maio os invasores flamengos se renderam. Em fevereiro de 1630 a Holanda tornaria a invadir o Brasil, desta feita na região de Recife. Matias de Albuquerque liderou resistência heróica com poucos recursos mas não conseguiu impedir o sucesso dos homens da Companhia das Índias Ocidentais, tido como o primeiro empreendimento multinacional com feições por assim dizer modernas.
Em abril de 1632 um português que se chamava Domingos Fernandes Calabar passou-se para o lado dos holandeses. Nascido em Porto Calvo, hoje Alagoas, senhor de engenho e conhecedor da região e das estratégias portuguesas, levou os holandeses a várias vitórias na capitania e nas terras vizinhas. A deserção de Calabar teve tal impacto que o pêndulo da vitória oscilou para os invasores. Reza a lenda que Calabar se alegrava demais com os prejuízos de seus patrícios. Um ardil montado pelos portugueses, em 1635, levou à captura de Calabar, que sentenciado à morte deixou o mundo pelo garrote. Os holandeses, em Porto Calvo, prestaram-lhe honras fúnebres. Em 1637 Nassau chegou ao Brasil, retomou a vila de Porto Calvo e enviou uma expedição para a Guiné com o objetivo de trazer mais escravos para Pernambuco. Em abril de 1638 Nassau tentou uma vez mais ocupar a Bahia. Chegaram a tomar alguns fortes na Baía de Todos os Santos mas a resistência local os derrotou. Em maio de 1644 Nassau deixou o Brasil a bordo do mesmo navio que o trouxera, de nome Zutphen.
Somente em 1654 os holandeses se renderiam na Campina do Taborda. O tratado da Paz de Haia só seria assinado em 1661 e publicado em 1663. Lembro-me ainda hoje da vibração com que batíamos os pés no Ginásio São João Batista quando o professor narrou este episódio. Seus métodos eram discutíveis. E famosos na escola. Lembro-me de tê-lo visto erguendo um coleguinha pela orelha. Não perdoava os desatentos e muito menos os relapsos. Tínhamos em torno de dez anos. Sua capacidade de nos envolver, porém, era magistral. Nos transportou para a época e vibramos como se João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e Henrique Dias fossem nossos próprios antepassados na peleja. Batíamos os pés como o fazíamos nas sessões de cinema no Tanópolis.
Se tivesse que resumir a cena, escreveria apenas que era um tempo de patriotismo. Aquilo fazia parte de nosso passado. Como Leônidas faz parte da Grécia, com todos os méritos, tenha sido um pouco romantizada a história ou não. Não há país no mundo que esteja incólume a certos exageros nas passagens famosas de construção de nacionalidade. Constroem-se mitos, cuja origem remonta ao nebuloso que não mais se perscruta, como ato de fé. É preciso que se sinta a presença de gigantes morais no passado comum, gente que não podemos trair de forma alguma, décadas, séculos ou milênios depois.
Em 1789, mesmo ano da revolução francesa, na Vila Rica em Minas Gerais, alguns líderes influenciados pelas idéias liberais e republicanas que vagavam pelo mundo planejaram uma revolta armada. Havia um infiltrado entre eles, Joaquim Silvério dos Reis, autor da famosa carta-denúncia ao Visconde de Barbacena, peça capital no desbaratamento do golpe que ficaria conhecido como a Inconfidência Mineira. Depois disto Silvério dos Reis viveu bom tempo em Portugal, vindo a morrer em São Luís no Maranhão em 1819. Seu túmulo não mais existe mas sua lápide na história o trata de maneira direta: traidor.
Figuras como Efialtes, Calabar e Silvério dos Reis conquistaram a ominosa condição de repugnantes. Porque saíram das entranhas a que se mostravam fiéis, dedicados. Foram ovos de serpente, chocados pela aparência fraterna. Personagens sobre cujas memórias os homens apõem sal, para garantir que se tornem estéreis ou sua descendência lamente o ter existido.
Ao analisarmos a maneira como nosso pobre país foi conduzido nas últimas décadas, com a desnacionalização de nossa indústria, vendida ao capital estrangeiro, sem alarde, somos convidados a concluir que houve muita traição. Planejada nas alcovas nacionais e de além-mar e perpetrada na calada das noites e na noite dos calados. Sob o terrível silêncio de nossa intelectualidade, cujo papel beira a estupidez.
Além da corrupção endêmica que nos mina como cupim em pau podre, há muito existe algo mais de errado. Porque de um projeto independente, soberano, que gerou empresas de alta capacitação, como na indústria aeronáutica, migramos para o papel de produtores agrícolas e fornecedores de riquezas minerais. Muito pouco para um país com as generosas características do Brasil.
O pior de tudo é que a traição de que somos vítimas prossegue, com o rebaixamento visível de nossa educação. Quem é o Judas? Não há um só, a permitir fácil execração. Há alguns milhares deles, em postos de governo, em bancos e na direção de empresas nacionais e estrangeiras, reduzindo nosso papel para o nível dos caudatários. Com um discurso empolado, linguagem alinhada com a modernidade, postura triunfal e muita, mas muita mediocridade. Estamos nas Termópilas, sem Leônidas.