Uma das aulas do A. Gibramsalt que mais se incrustou na minha memória começou com o relato de um episódio da sua esfera pessoal.
– Eu tinha começado a ler um livro do Nietzsche que o Nicanor P. me emprestou e logo nas primeiras páginas senti brotar dentro de mim um pressentimento inquietante, que foi crescendo como uma avassaladora inundação vinda para aniquilar ou pelo menos transformar completamente tudo o que eu era, ou acreditava ser. Em certo ponto, não pude continuar lendo e resolvi sair a caminhar. Saí de casa e andei sem rumo por qualquer lado, sentindo tomar conta de mim uma espécie de premonição, que ia alagando mil pensamentos desencontrados, até que minha andança foi interrompida pelas águas do rio Mapocho.
Era um dia de setembro de sol radiante, e os picos nevados dos Andes se avistavam muito nítidos, pareciam mais próximos que de costume. Com os cotovelos apoiados na grade metálica da ponte de pedestres, meu olhar se ofuscou por momentos na brancura luminosa da Cordilheira, e depois se deixou levar pelas águas desbocadas do Mapocho, que estavam muito crescidas, a ponto de se formar no centro do caudal como que um calombo de massa líquida e energia cinética desenfreada e reluzente.
É voz corrente que no Bairro Alto as pessoas aproveitam esses períodos de cheias para se livrarem dos gatos que já não querem. Pesquisei nas águas distraído, mas não pude ver nenhum gato afogado.
Então, pelo caminho de volta, me detive na sombra de algumas árvores na margem do rio. Daquela perspectiva a torrente central me sugeriu uma grossa flecha líquida, lançada das montanhas em direção ao oceano… Na minha mente, precisamente como uma flecha, tinha surgido um pensamento sobre meus ancestrais pelo lado materno, todos mapuches. Sempre tive uma consciência meio anestesiada da contradição primordial do ser chileno, mas naquele momento sob aqueles troncos uma parte minha submergida no caudal do tempo, dos séculos, parecia querer vir à tona.
Foi quando meu olhar descobriu algo que me desconcertou, com a força de um misterioso símbolo cósmico. E era que as águas do Mapocho perto da margem não seguiam o mainstream. Ali não havia águas desbocadas, tudo era muito lento, se formavam pequenos redemoinhos e as águas escuras, contrariando a corrente principal, se moviam para trás! Como querendo voltar para a Cordilheira… Meu olhar se deixou levar por essa insurreição líquida, quis saber até onde ia a contradição… Mas fui detido e quase caio de costas: dois olhos amarelos e inchados me fitavam das águas… Era um enorme gato preto afogado, que havia encalhado entre galhos secos, brancos como ossos descarnados…
(Enquanto lembro e transcrevo, não posso evitar o pensamento, que agora o que incha e desce boiando nas águas do Mapocho não são gatos, são corpos humanos.)
Ele olha agradecido para trás – agradecido a suas andanças, a sua dureza e alienação de si, a seus olhares distantes e voos de pássaros em frias alturas. Como foi bom não ter ficado „em casa“, „sob seu teto“… Ele estava fora de si, não há dúvida. Somente agora vê a si mesmo – e que surpresas não encontra! Que arrepios inusitados! Que felicidade mesmo no cansaço, na velha doença… É uma cura radical para todo pessimismo (o câncer dos velhos idealistas e heróis da mentira) ficar doente à maneira desses espíritos livres… e depois, durante muito tempo tornar-se sadio, quero dizer „mais sadio“. Há sabedoria nisso, sabedoria de vida, em receitar para si mesmo a saúde em pequenas doses e muito lentamente.
Você deve tornar-se senhor de si mesmo,… você deve ter domínio sobre o seu pró e o seu contra, e aprender a mostrá-los e novamente guardá-los de acordo com seus fins. E perceber o quê de estupidez que existe nas oposições de valores e a perda intelectual com que se paga todo pró e todo contra. Você deve aprender a ver a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça. Tal é a resposta que o espírito livre dá a si mesmo. „Tal como sucedeu a mim“, diz ele para si, „deve suceder a todo aquele no qual uma tarefa quer tomar corpo e vir ao mundo. Nosso destino dispõe de nós, mesmo quando ainda não o conhecemos, como aventureiros e circunnavegadores desse mundo interior que se chama „ser humano“ – em toda parte penetrando, quase sem temor, nada desprezando, nada perdendo, tudo saboreando…
Tenha a lua como meta, mesmo que erre o alvo você pousará entre as estrelas.“
(Esmiuçando o conceito do Amor Fati, Gibramsalt ilustrou com o exemplo da Nicole Q., médica que foi uma das principais coordenadoras do programa de entrega gratuita de leite e assistência hospitalar às famílias pobres.
Nicole nasceu em Temuco e nunca conheceu seus pais, foi adotada por um casal de Santiago quando era um bebê. Ela estudou medicina e ao receber seu diploma em 1960, pegou um trem e foi como voluntária prestar socorro à população flagelada, no fatídico terremoto de Valdívia.)
Os helicópteros já não sobrevoam a Embaixada, mas ainda infestam meus sonhos alucinados, debaixo do negro piano de cauda. Num desses sonhos recentes um helicóptero voa sobre o oceano, e dentro uns homens verdes com rosto de lagartos abrem com facas os ventres de três estudantes narcotizados e despidos, estirados no chão sobre uma lona verde-oliva. Em seguida abrem a porta do helicóptero e, um depois do outro, os estudantes são jogados para fora. E no sonho vejo em câmara lenta os corpos nus caindo e afundando na água azul do mar, que se tinge de vermelho.
Noutro sonho estou em Lo Hermida na casa de Juan Cornejo (que me emprestou um belo charango e não pude devolver) e vários helicópteros sobrevoam, disparando do alto em alvos dentro da población. Nisso um helicóptero começa a baixar e pousa perto da casa de Juan. A porta se abre e do helicóptero sai o C. Camacho, meu chefe no restaurante da Caixinha. Camacho está vestido de padre, com batina e tudo, e se aproxima com o dedo em riste apontando para mim.
– Corta essa barba e esse cabelo e dá um jeito de escapar, porque teu nome saiu numa lista dos mais buscados publicada no El Mercurio, junto com o almirante Aragão! – ele me intima.
E eu acordo com o coração pulando.