“Não tenho a certeza de que eu exista. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.”
Escritor, poeta, crítico literário, tradutor e ensaísta, Jorge Luis Borges nasceu em 1899, na cidade de Buenos Aires, Argentina, e viveu até os 86 anos, falecendo em 1986, em Genebra. Desenvolveu a paixão pelos livros desde criança e por influência da avó paterna, de origem inglesa, evoluiu a fluência do inglês; aos dez anos de idade, publicou no jornal El País a sua tradução para o espanhol do conto “Príncipe Feliz”, de Oscar Wilde.; como se vê, nosso autor foi sempre um aficionado da escrita e da literatura.
Em 1914, mudou-se com a família para Genebra, Suíça, para que seu pai pudesse tratar o avanço da perda de visão, e também lá, o jovem cursou o ensino médio; quanto à cegueira, esse mesmo mal hereditário mais tarde acometeria Borges, o qual ficou cego ainda muito cedo, aos cinquenta e cinco anos. É na Suíça que o jovem autor preenche seus estudos e antes de seu retorno à Argentina, vai viver também na Espanha, onde entra em contato com movimentos literários de vanguarda e toda a efervescência cultural dos anos 20.
De volta ao país de origem, em 1921, Borges mergulha na cena da cidade e cria a coleção de poemas “Fervor de Buenos Aires” (1923), sua primeira publicação, lançando a seguir outros seis livros nos próximos sete anos. Além da produtividade – publicou mais de quarenta obras – a versatilidade tornou-se sua característica mais marcante: embora seja difícil definir sua obra a partir de um único fator, podemos dizer que a leitura enquanto operação que determina a escrita, enquanto atos que recriam gêneros e novidades discursivas, esta é a marca indelével da produção borgiana.
É a partir da década de 1930 que Borges vai se voltar com maior dedicação ao gênero conto, mais tarde reunindo esses textos em seus livros mais conhecidos, “Ficções” (1944) e “O Aleph” (1949), obras que lhe trouxeram reconhecimento internacional. Pode-se afirmar que Jorge Luis Borges é um dos alicerces fundadores da literatura latino-americana do século XX; ele assegurou a renovação e, ao mesmo tempo, a retomada das raízes da cultura ocidental ao continente; criou o grupo Martín Fierro, porta-voz da vanguarda literária dos anos 1920 e 1930 na Argentina, e dedicou-se ao conto, à poesia, ao ensaio, à crítica literária, ao romance e à tradução.
Quanto a sua condição de cegueira e a despeito desse problema que foi gradualmente avançando ao longo da vida, Borges seguiu produzindo. Para isso, contava com a ajuda da mãe e de assistentes como o escritor Alberto Manguel, na época ainda um adolescente, que liam para Borges seus textos e para quem ele ditava sua produção. Mesmo após ter perdido a visão, Borges passou a ministrar aulas na Universidade de Buenos Aires e se tornou diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, cargo que ocupou por dezoito anos.
Se a cegueira o desmotivou? O próprio Borges respondeu que não, em sua última conferência, realizada em 1977 no teatro Coliseu, quando ele afirmou sentir as cores e os perfumes que o possibilitam a transmitir o que ele produz. O sucesso de Borges sobretudo na escrita de contos o colocou na condição de mestre do gênero, segundo os analistas literários, ao lado de Edgar Allan Poe e Anton Tchekhov.
A criatividade e a genialidade contidas nas suas histórias podem levar o leitor a acreditar na veracidade daquilo que lê, efeito da literatura fantástica do autor que coordena com suas palavras abrangentes os argumentos fantásticos, graças profanas e dados reais; dessa forma, os críticos chegaram a dizer que Jorge Luis Borges foi para o conto “a maior influência sobre o gênero na segunda metade do século XX”.
Por outro lado, a poesia de Borges é encantadora, ela nos fascina e nos ensina a reconhecer elementos e certezas que deixamos de lado e que, depois, provamos de nossa atenção e de nossa riqueza de conhecimento.
Primeiramente, vamos retomar uma citação do autor: Por vezes à noite há um rosto / Que nos olha do fundo de um espelho / E a arte deve ser como esse espelho / Que nos mostra o nosso próprio rosto. O espelho é um dos elementos fundamentais na poesia do poeta, ele nos mostro aquele que somos e que não sabíamos até então. Vamos expor alguns poemas. Primeiro: Os meus livros / Os meus livros (que não sabem que existo) / São uma parte de mim, como este rosto / De têmporas e olhos já cinzentos / Que em vão vou procurando nos espelhos / E que percorro com a minha mão côncava. / Não sem alguma lógica amargura / Entendo que as palavras essenciais, / As que me exprimem, estarão nessas folhas / Que não sabem quem sou, não nas que escrevo. / Mais vale assim. As vozes desses mortos. Os olhos – a visão – aí estão presentes como uma busca incessante do autor, e o espelho também se faz presente, pois é ele que nos mostra quem somos.
Segundo: Os justos / Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire. / O que agradece que na terra haja música. / O que descobre com prazer uma etimologia. / Dois empregados que em um café do Sul jogam um silencioso xadrez. / O ceramista que premedita uma cor e uma forma. / O tipógrafo que bem compõe esta página, que talvez não lhe agrade. / Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto. / O que acaricia um animal adormecido. / O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram. / O que agradece que na terra haja Stevenson. / O que prefere que os outros tenham razão. / Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo. Aqui a busca da visibilidade se processa no cotidiano da busca social, do entendimento entre as pessoas.
Terceiro: Labirinto / Não haverá uma porta. Já estás dentro, / Mas o alcácer abarca o universo / E não tem nem anverso nem reverso / Nem muro externo nem secreto centro. / Não penses que o rigor do teu caminho / Que fatalmente se bifurca em outro, / Que fatalmente se bifurca em outro, / Terá fim. É de ferro o teu destino / Como o juiz. Não creias na investida / Do touro que é um homem cuja estranha / Forma plural dá horror a essa maranha / De interminável pedra entretecida. / Não virá. Nada esperes. Nem te espera /No escuro do crepúsculo uma fera. Este labirinto é igualmente um dos pensamentos mais expostos pelo autor; ele é constante e nos revela a procura que fazemos, quotidianamente.
Quarto poema: A rosa profunda; Eu sou aquele que sabe que não é menos vaidoso / do que o observador vaidoso que, no espelho de silêncio e vidro / de silêncio e vidro segue o reflexo / ou o corpo (não importa) do irmão. / Eu sou, meus tácitos amigos, aquele que sabe / que não há outra vingança além do esquecimento / nem qualquer outro perdão. Um deus concedeu / ao ódio humano essa curiosa chave. / Eu sou aquele que, apesar de tão ilustres caminhos / de perambulação, não decifrei o labirinto / singular e plural, árduo e distinto, / do tempo, que é um só e pertence a todos. / Eu sou aquele que não é ninguém, aquele que não foi uma espada / na guerra. Eu sou o eco, o esquecimento, o nada. O labirinto, a nosso contragosto, é o elemento de certeza que se impõe em nossos pensamentos; podemos pensar em tudo, acreditamos tudo saber e conhecer, e quando nos damos conta, estamos naquele enredo profundo.
Assim, chegamos ao final de nossos textos, e podemos afirmar que uma parte importante da obra de Borges consiste em reflexões sobre a literatura e a metafísica; esta dimensão especulativa é inseparável de seu trabalho de poeta, e cada poema lhe proporciona um novo horizonte de exercícios mentais que, por sua vez, se transformarão em possibilidades inventivas para o autor e para nós, seus leitores.