Quando me propus a escrever com alguma regularidade, procurei evitar a pressão da Redação do Jornal pedindo o texto na bacia das almas. Produzi mais que o necessário para constituir um acervo, evitando redigir algo às pressas, com pouca ou nenhuma inspiração.
Também decidira realçar mais as coisas positivas que suas contrárias, como forma de contribuir com algum otimismo. Que os textos tivessem laivos de esperança, ainda que sem o dom dos vates. Que evocassem uma pitada de poesia, ainda que sem o mínimo talento dos bardos.
Anos se foram e confesso que provavelmente descumpri o propósito original, mais ou menos como o fracasso dos propósitos de virada de ano. Avesso a superstições e pouco afeito ao puro saudosismo ou pieguices, minha carroça das letras foi pervagando caminhos descurados, volta e meia se perdendo em linhas mal escritas e nada otimistas.
Assim, fiel ao início, por que não falar do pica-pau que vi, mal alvorecia o dia, empinado numa palmeira? Entre uma e outra bicada, subia com destreza e encanto. Com a ajuda da rede mundial tentei identificar sua espécie. Acho que era um pica-pau-verde-barrado. Silencioso atrás de uma janela, o observei por alguns segundos, depois dos quais ele tinha mais a fazer. E eu também. Foi-se, deixando nas minhas retinas um doce começo de dia.
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Até os apedeutas sabem que o Brasil é a pátria da abjeta desigualdade, conjugada à mais patética impunidade. Desnecessário enumerar algumas das maiores ladroagens da nossa história recente, ou lembrar da soltura de tantos canalhas que nos têm conduzido para o abismo. Afinal, uma sociedade que pretenda ser democrática não pode resvalar na farta promoção dos patifes. Mas é o que temos, sem horizonte alvissareiro.
Qual a solução para tantos problemas? Excluindo-se a via revolucionária – que ao derribar o status quo normalmente coloca no chão a lei, o direito adquirido, as benesses corporativas e outras tantas coisas do mosaico que comanda a sociedade,- o que pode ser feito?
Meus botões dizem que há uma reforma que sacudiria o país sem um único tiro: previdência social única. Defendi esta idéia num grupo de amigos do qual fazem parte alguns militares. Sua reação foi prontamente contrária, gerando um debate com a participação de três outros colegas. O primeiro deles afirmou que o país precisa decidir que tipo de forças armadas deseja. Não entendi exatamente a ligação de uma coisa com a outra, mas respondi que precisamos decidir que tipo de povo queremos. O tema rendeu além da conta: militares correm risco, não recebem horas extras, …
Tentando não magoar, mas argumentando, lembrei que muitas categorias têm particularidades e são contempladas com a previdência dos comuns, dos quais aliás faço parte. Segurança? Há adicionais de insalubridade e periculosidade na previdência, que preveem remuneração extra para muitas profissões.
O que serve para lixeiros – pendurados em caminhões, recolhendo nas ruas sabe-se lá o quê,- para mineiros, para peões que labutam com animais aspados ou para trabalhadores que lidam com alta tensão é bom só pra eles? Horas extras? Como isto é resolvido com as tripulações de voos internacionais ou caminhoneiros?
A conversa não deu em nada, exceto um certo azedume … A reação corporativa, seja lá a categoria que escolhermos, é certamente um óbice para mudarmos o país. Quem pode mudar tudo isto? Quem apoiaria a mudança? Os que detêm o monopólio da força, os operadores do direito, os funcionários de estatais? Ou só os comuns, que não têm voz?
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Ontem soube que um conhecido, funcionário de uma empresa que comercializa ferramentas industriais, emigrará em dois meses para Portugal. Trata-se de ótima pessoa, com a qual conversei inúmeras vezes. Está empolgado. Sua irmã já está em Aveiro e agora irão ele, a esposa, um filho e sua mãe. O rapaz tem trinta e dois anos e listou uma série de vantagens da terra lusa, do salário à estabilidade social, do respeito à lei à baixa criminalidade. O que dizer? Que fiquei feliz por ele, mas triste pelo nosso país. Quando nos despedimos, me disse que lá o governo trabalha para o povo enquanto aqui o povo trabalha para o governo. Talvez exagere um pouco em relação a Portugal, mas não erra nem um pouco ao referir-se ao Brasil.
É mais um que se vai, por não acreditar no futuro de seu país. Se depender do horizonte, no qual navega a silhueta de um narcoestado, acho que não retornará.
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Comentei que seria proveitoso pensar na morte diariamente. Sem melancolia, ou medo, mas por profilaxia espiritual. A pessoa que me ouviu mostrou-se surpresa, quase assustada. Talvez não reze pelo menos uma Ave Maria a cada dia. Se o fizesse, não se surpreenderia: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém”.
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Décadas de existência têm o dom de esboroar fantasias. Não mais aderimos a qualquer papagaiada e muito menos a ideologias, mortalhas dos desvarios humanos. Pensar na morte é o caminho para abandonar o pau de sebo das coisas e preocupações fúteis, tolas e inúteis.
Não podemos, entretanto, nos entregar ao pessimismo. Pelo menos não mais do que por cinco minutos. Se sinto otimismo, porém, sua raiz é escatológica. Busco fortaleza nos santos, como João Paulo II. Um de seus livros, em que descreve sua trajetória episcopal, tem por título uma passagem que não nos permite desanimar: “Levantai-vos! Vamos!”. Porque se aproxima aquele que trai.