“entre o planeta e o sem-fim, / a asa de uma borboleta”
Confesso que estava com saudade da poesia de Cecília e que por isso decidi buscar alguns de seus poemas mais significativos para mim (todos o são, mas alguns deles são essenciais para que se respire melhor). Sabemos que Cecília Meireles nasceu em 1901, no Rio de Janeiro, e que morreu também no Rio de Janeiro, em 1964.
No decorrer de sua vida, a autora se tornaria uma das vozes líricas mais importantes da literatura brasileira e que, além de poeta, também foi ensaísta, jornalista, tradutora, folclorista, professora e até pintora: Cecília Benevides de Carvalho Meireles, um verdadeiro orgulho nacional!
Cecília ficou órfã de pai mesmo antes de nascer e perdeu a mãe antes dos três anos de idade; foi criada pela avó materna, Jacintha Garcia Benevides, natural da Ilha dos Açores, de quem herdou o interesse pela cultura portuguesa, indiana e por todo o Oriente.
Segundo a poeta, essas perdas acabaram dando a ela uma certa intimidade com a morte e, por isso, aprendeu as relações entre o “efêmero” e o “eterno”, marca importante de sua escrita.
Sob os cuidados da avó materna, ela frequentou a Escola Normal e se formou professora, em 1917; com apenas 18 anos de idade, em 1919, publicou “Espectros”, seu primeiro livro de poemas com o qual – afirmam os analistas literários – iniciava-se assim seu fazer artístico e seu pensamento filosófico, além do desejo por uma arte universalista.
Cecília trabalhou no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, de 1930 a 1933, escrevendo todos os dias sobre a educação; foi a responsável pela criação da primeira biblioteca infantil do país, em 1934, no Rio de Janeiro; um ano depois, foi convidada a lecionar Literatura Luso-brasileira e, logo após, Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro), onde trabalhou até 1938.
Também lecionou Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas, nos Estados Unidos. Cecília viajou pelas Américas na década de 1940, visitando os Estados Unidos, México, Argentina, Uruguai e Chile; ainda em 1940 e em Austin, a autora escreveu dois poemas sobre seu tempo na capital do Texas e um longo poema de oitocentas linhas, socialmente consciente, intitulado “EUA 1940”; este poema foi publicado postumamente.
Como jornalista, suas colunas de crônicas concentravam-se mais na educação, mas também em suas viagens ao exterior no hemisfério ocidental, Portugal, outras partes da Europa, Israel e Índia, onde recebeu um doutorado honorário.
A escritora Cecília Meireles recebeu os seguintes prêmios e homenagens: Medalha de ouro, em 1933, das mãos de Olavo Bilac, o qual, além de poeta, foi inspetor escolar do Distrito Federal, no Rio de Janeiro; em 1938, foi laureada pela Academia Brasileira de Letras pelo Prêmio Olavo Bilac; no Chile, em 1952, foi galardoada com o Grau de Oficial da Ordem do Mérito; em 1954, o título de doutora honoris causa foi-lhe entregue pela Universidade de Delhi, na Índia; e em 1965, a autora foi homenageada postumamente com o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.
A autora escreveu mais de uma centena de obras poéticas, e como ela é uma poetisa da segunda fase do modernismo brasileiro (quando há a preocupação dos artistas com o destino do homem e com seu estar-no-mundo), seus textos, portanto, apresentam as seguintes características: crise existencial; conflito espiritual; temática social; reflexão sobre o mundo contemporâneo; liberdade formal de seus versos; poemas livres, sem rima e sem métrica.
Passamos agora à exibição de três poemas de Cecília Meireles.
O primeiro: “Despedida”. “Por mim, e por vós, e por mais aquilo / que está onde as outras coisas nunca estão, / deixo o mar bravo e o céu tranquilo: / quero solidão. / Meu caminho é sem marcos nem paisagens. / E como o conheces? – me perguntarão. / – Por não ter palavras, por não ter imagens. / Nenhum inimigo e nenhum irmão. / Que procuras? – Tudo. Que desejas? – Nada. / Viajo sozinha com o meu coração. / Não ando perdida, mas desencontrada. / Levo o meu rumo na minha mão. / A memória voou da minha fronte. / Voou meu amor, minha imaginação… / Talvez eu morra antes do horizonte. / Memória, amor e o resto onde estarão? / Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. / (Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! / Estandarte triste de uma estranha guerra…) / Quero solidão.” ‘Despedida’ está presente no livro ‘Flor de poemas’, publicado em 1972 (póstumo). Vemos nos versos a procura do locutor do poema pela solidão; essa busca pela solidão é um caminho, faz parte de um processo. O sentimento de solidão é uma paráfrase da vontade de morrer, que se expressará no final dos versos quando a autora afirma ‘Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.’ A construção do poema é feita com base no diálogo, com perguntas e respostas e um suposto interlocutor do outro lado com quem se estabelece uma comunicação. Uma pergunta que paira é a quem a poeta se dirige exatamente; no sexto verso vê-se, por exemplo, a seguinte questão ‘E como o conheces? – me perguntarão’. Quem faz a pergunta? A incerteza se estabelece. ‘Despedida’ é uma criação marcada pela individualidade: os verbos em primeira pessoa – ‘quero’, ‘deixo’, ‘viajo’, ‘ando’, ‘levo’; essa sensação de individualismo é reforçada pelo uso do pronome possessivo ‘meu’, o qual se repete ao longo do poema.
O segundo poema: “Encomenda”. “Desejo uma fotografia / como esta – o senhor vê? – como esta: / em que para sempre me ria / como um vestido de eterna festa. / Como tenho a testa sombria, / derrame luz na minha testa. / Deixe esta ruga, que me empresta / um certo ar de sabedoria. / Não meta fundos de floresta / nem de arbitrária fantasia… / Não… Neste espaço que ainda resta, / ponha uma cadeira vazia.” Este poema foi inserido no livro ‘Vaga Música’, de 1942; ele parte de uma experiência profundamente biográfica; trata-se de um poema autocentrado e que fala das dores, das angústias e dos medos da autora: ela fez um mergulho dentro de si mesma, e lemos a esperança de que uma fotografia possa retrata-la, identifica-la, ajudá-la a mapear o seu eu interior e exterior. Esta obra, ‘Encomenda’, tem um tom sombrio, de amargura, apesar da aceitação e do acatamento da passagem do tempo: ‘Deixe esta ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria’. Já na última estrofe, observa-se que, por mais que a passagem do tempo seja dura, a autora não pretende disfarçar o sofrimento nem as mágoas, e deseja assumir sua solidão assim como assume suas próprias rugas.
O terceiro poema: “Reinvenção”. “A vida só é possível / reinventada. / Anda o sol pelas campinas / e passeia a mão dourada / pelas águas, pelas folhas… / Ah! tudo bolhas / que vem de fundas piscinas / de ilusionismo… – mais nada. / Mas a vida, a vida, a vida, / a vida só é possível / reinventada. / Vem a lua, vem, retira / as algemas dos meus braços. / Projeto-me por espaços / cheios da tua / Figura. / Tudo mentira! Mentira / da lua, na noite escura. / Não te encontro, não te alcanço… / Só – no tempo equilibrada, / desprendo-me do balanço / que além do tempo me leva. / Só – na treva, / fico: recebida e dada. / Porque a vida, a vida, a vida, / a vida só é possível / reinventada.” Publicado no livro ‘Vaga Música’, 1942, o poema ‘Reinvenção’ conta com vinte e seis versos com rimas alternadas em três estrofes; o refrão não possui rimas e é repetido três vezes – no princípio, no meio e no final do poema – reforçando a ideia que deseja transmitir. Os versos apontam para a necessidade de se olhar ao redor a partir de uma nova perspectiva, experimentando a vida de uma maneira diferente, redescobrindo a cor do cotidiano; mas do ponto de vista negativo, a solidão, uma característica da lírica de Cecília, também aparece ao longo do poema: ‘Não te encontro, não te alcanço…’, e ainda, por outro lado, consciente das dores da vida, a autora do poema o encerra com um tom de esperança, apontando uma possibilidade de saída solar.
Termino nosso encontro com Cecília Meireles da melhor e única forma possível, ou seja, com um peque poema da autora, um daqueles que nos ajudam a sobreviver: “No mistério do sem-fim / Equilibra-se um planeta. / E, num planeta, um jardim, / e, no jardim, um canteiro; / no canteiro, uma violeta, / e, sobre ela, o dia inteiro, / entre o planeta e o sem-fim, / a asa de uma borboleta”.