Charles-Pierre Baudelaire nasceu em Paris, foi o filho rebelde e genial de Joseph-François e de sua mãe Caroline. Aos seis anos de idade, o menino perde seu pai, e em pouco mais de um ano após, sua mãe se casa com um militar de “caráter rígido” e “espírito estreito”, e a família passa a morar em Lyon.
Embora trivial o fato de uma jovem viúva estabelecer novos laços matrimoniais, como no caso de Caroline, mesmo àquela época, muito se comentou que Baudelaire imaginava a atenção exclusiva de sua mãe, o que nunca aconteceu. O fato é que Baudelaire ingressa no internato do Colégio Real de Lyon em 1829, completando seus estudos dez anos depois, no Liceu Louis-le-Grand, então com dezoito anos e já de volta a Paris.
Mesmo que não fosse afeito à disciplina e ao ambiente escolar, Baudelaire mantinha seus sentimentos expressos em cartas que ele escrevia a sua mãe; o jovem também desenvolveu o aprendizado de latim e grego, línguas pouco acessíveis à maioria esmagadora dos estudantes por serem ensinadas em instituições muito caras ou de difícil acesso; igualmente, somou um sólido conhecimento de literatura clássica.
Embora não fosse necessariamente de uma família rica, Baudelaire sempre teve acesso à cultura e ao conhecimento. De volta a Paris, vivendo no Quartier Latin, o famoso bairro que concentra boêmios e intelectuais, a maioridade de Baudelaire permite ainda seu acesso à herança deixada pelo pai, mas sabemos qual seria seu destino: ele se envolve com drogas e álcool, passa a viver sem privações, gastando em pouco tempo a metade de seu espólio paterno. A vida de luxúria vai fazer com que sua mãe entre com um pedido à Justiça francesa, alegando que a herança do filho pródigo precisa ser administrada por um tutor; assim o fez e o poeta sobrevive dessa forma.
Toda sua existência é marcada pela rebeldia e pelos excessos, o que caracteriza sua poesia, muitas vezes incompreendida. Sua genialidade e seu talento transformam a literatura, suas “mudanças de curso” apresentam para nós o que seria de impossível entendimento. Sua emoção de revolta e desilusão do mundo desenvolvem nossa busca pelo melhor e pela cognição compreensiva. Charles Baudelaire é considerado o pai do simbolismo, e o livro de poesias que mais atingiu seu público, na época, é “As flores do mal”, editada em 1857.
Esta obra foi organizada em cinco secções segregadas tematicamente: “Tédio e Ideal”, “Quadros Parisienses”, “O Vinho”, “As Flores do Mal”, “Revolta”, “A Morte”, e depois foi adicionado mais um grupo de poemas dentro da obra “As Flores do Mal”. O autor, além de poeta, foi ensaísta, crítico de arte e tradutor; Baudelaire também foi um dos primeiros tradutores de Edgar Allan Poe (“O Corvo”, 1845), a quem ajudou a divulgar na França; ainda reuniu suas traduções em diversas coletâneas, destacando-as como “Histórias extraordinárias”.
O autor foi reconhecido como o precursor do simbolismo, ultrapassando a construção poética até então fartamente utilizada, a saber, o romantismo e o naturalismo. Em oposição, ele apresenta como suas características principais os aspectos místicos, espirituais, intuitivos e transcendentais; dessa forma, o poeta simbolista busca compreender aspectos da alma humana e compõe obras que exaltam a realidade subjetiva e a valorização do “eu”; por consequência, é notório em suas obras a fuga da realidade, uma linguagem imprecisa e vaga, e a negativa da lógica e da razão.
As “Flores do Mal” é a principal obra do poeta, pois inaugura o simbolismo na Europa; ela começou a ser escrita quando Charles Baudelaire tinha, aproximadamente, vinte anos de idade. Sua obra mais emblemática foi censurada logo após a publicação e condenada por ser subversiva e por ofender a moral pública, tendo de pagar uma multa. Os chamados “poetas malditos” – Arthur Rimbaud, Paul Verlaine e Stéphane Mallarmé – sofreram influência da obra de Baudelaire e até os dias de hoje, sua obra influencia a literatura mundial.
Agora, acessamos “As Flores do Mal” e analisamos dois de seus textos.
O primeiro é “Mulheres malditas”, e nele, as mulheres são comparadas a um rebanho que, deitado na areia, olha para o próprio reflexo nas águas e sente calafrios e mágoas; mais adiante, outras mulheres estão candidamente apaixonadas, imersas em ilusões e desejos; assim, o poeta descreve a mulher como sendo um ente sagrado e, ao mesmo tempo, profano. “Como um rebanho absorto e na areia deitadas, / Elas volvem o olhar para o espelho das águas; / Os pés em mudo afago e as mãos entrelaçadas, / Bebem o fel do calafrio e o mel das mágoas. / Umas, o coração abrindo em confidências, / Nos bosques onde se ouve um córrego em segredo, / Vão soletrando o amor em cândidas cadências / E o pólen raspam aos rebentos do arvoredo; / Outras, tais como irmãs, andam lentas e cavas / Por entre as rochas apinhadas de ilusões, / Onde viu Santo Antônio aflorar como lavas / (…) / Outras há que, ao calor da líquida resina, / No côncavo sem voz de um velho antro pagão / Pedem por ti em meio à febre que alucina, / Ó Baco, ao pé de quem dorme toda a aflição! / (…)” Ressaltamos que nesses versos há uma extensa sinestesia, ela está presente em: “olhar”, “fel”, “calafrio”, “mel”, “ouve”, “calor”, “febre”. Observação: sinestesia ocorre quando há o uso de sensações de diferentes órgãos, ou seja, essa figura de linguagem está ligada aos sentidos da audição, visão, tato, paladar e olfato.
Segundo texto: já no poema “Uma carniça”, o poeta faz a mulher amada se lembrar do “objeto” que eles encontraram numa “bela manhã radiante”, isto é, uma “carniça repugnante”. Ele a descreve com repulsivos detalhes, e, ao final, conclui que sua interlocutora, um dia, será como tal carniça:
“Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos / Numa bela manhã radiante: / Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, / Uma carniça repugnante. / (…) / Ardia o sol naquela pútrida torpeza, / Como a cozê-la em rubra pira / E para ao cêntuplo volver à Natureza / Tudo o que ali ela reunira. / E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça / Como uma flor a se entreabrir. / O fedor era tal que sobre a relva escassa / Chegaste quase a sucumbir. / Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço, / Dali saíam negros bandos / De larvas, a escorrer como um líquido grosso / Por entre esses trapos nefandos. / (…) / – Pois hás de ser como essa coisa apodrecida, / Essa medonha corrupção, / Estrela de meus olhos, sol de minha vida, / Tu, meu anjo e minha paixão! / Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza, / Após a bênção derradeira, / Quando, sob a erva e as florações da natureza, / Tornares afinal à poeira. / Então, querida, dize à carne que se arruína, / Ao verme que te beija o rosto, / Que eu preservei a forma e a substância divina / De meu amor já decomposto!”
O poema apresenta a sinestesia, evidente nas palavras “radiante”, “Ardia”, “sol”, “rubra”, “flor”, “fedor”, “Zumbiam” e “negros”; além disso, a musicalidade dos versos é obtida por meio das rimas e da assonância; a assonância repete sons de vogais, por exemplo, “encontramos”, “ramos”, e “rosto” , “decomposto”.
Para terminar nossa redação, apresento um dos chamados “pequenos poemas” de Baudelaire, intitulado “Convite à viagem”, o qual participa de “As Flores do Mal”, 1857. “Minha filha, minha irmã, / Pense na doçura / Ir para lá e viver juntos! / Amar à vontade, / Amar e morrer / Em um país que se parece com você! / Os sóis úmidos / Desses céus enevoados / Têm encantos para minha mente / Tão misteriosos / De seus olhos traiçoeiros, / Que brilham através de suas lágrimas. / Lá, tudo é ordem e beleza, / luxo, calma e prazer. // Móveis reluzentes, / Polidos pelo tempo, / Decorariam nosso quarto; / As flores mais raras / Misturando seus aromas / Com o vago aroma de âmbar, / Os ricos tetos, / Os espelhos profundos, / O esplendor oriental, / Tudo falaria / Para a alma em segredo / Sua doce língua nativa. / Lá, tudo é ordem e beleza, / Luxo, calma e prazer. // Veja nesses canais / Dormem esses vasos / Cujo humor é errante; / É para satisfazer / Seu menor desejo / Que eles vêm do fim do mundo. / – O pôr do sol / Cobrem os campos, / Os canais, a cidade inteira, / De jacinto e ouro; / O mundo adormece / Em uma luz quente. / Lá, tudo é ordem e beleza, / Luxo, calma e prazer.”