Marta estava muito cansada naquele dia. Andava num rodopio desde as seis da manhã e àquela hora já se sentia a arrastar os pés, com aquele calo no dedo do pé deformado pela artrose… só lhe apetecia mesmo andar descalça pela calçada … mas não podia!
Dizem que a idade não perdoa e de facto, embora Marta acordasse agradecida pelo dom da vida e pelas pequenas dores intermitentes que apesar de tudo ainda a deixavam mexer- se, andar, ver, ouvir e falar, essas pequenas dores sem importância vinham confirmando os anúncios da brancura do cabelo e das rugas crescentes …naquele dia era o calo… devia estar a anunciar chuva nos próximos dias…Marta olhou para os pés e percebeu que os sapatos dourados estavam velhos e precisava de outros…mas naquela data não dava muito jeito…
No regresso da Carris onde fora carregar o passe, ao passar pela segunda vez naquele dia, à porta do sapateiro de vão de escada daquela rua perto de sua casa, de repente, Marta lembrou -se de entrar e perguntar se teria alguma coisa grande e mole que lhe servisse…
Logo se seguiu o habitual numa qualquer sapataria das grandes: prova, não prova, pega e larga, calça e descalça, atendida delicadamente pelo sapateiro que mal conhecia, Marta de repente deu conta da música de fundo e perguntou, curiosa:
‘ O senhor está a ouvir música clássica? É a Antena 2?’
E o sapateiro, sorrindo, respondeu:
‘ Sim, é a única estação de rádio que ouço enquanto trabalho… sabe? Gosto muito, dá-me calma, serenidade… as outras dão muita publicidade, muito falatório, muita música barulhenta… não gosto! ‘
Marta comentou que também gostava de música clássica e que realmente o excesso de informação e barulho não convidavam à serenidade. E o silêncio também fazia falta… em tempos de tanta guerra, violência e confusão como os nossos…
Então o sapateiro, pelo meio das provas e mostras de sapatos (‘tenho poucos, mas posso arranjar o número da senhora… olhe, e aquela mala ali, se gosta, também lhe posso fazer um preço especial… é um amigo meu do Alentejo que me fornece…’) contou- lhe que sempre gostara de música desde criança, e com 18 anos fora estudar órgão e piano e , como quem não quer a coisa, começa a dizer- lhe que gostava muito dos salmos do Rei David, que sempre voltava a ler na sua Bíblia. Disse-lhe que tocava em teclado… e de repente mostra-lhe, protegido debaixo de um pano, sobre uma cadeira, um grande acordeão.
Espantada, Marta perguntou-lhe se ainda tocava órgão também, e ele disse que sim, só às vezes e tinha ali o acordeão para tocar quando lhe apetecia, já não em grandes grupos, mas em circunstâncias especiais…
Com o à – vontade que permite a intimidade de estar ali sentada numa cadeira à frente de um desconhecido, calçando e descalçando sapatos, de pé ao léu, Marta de repente, perguntou- lhe se ele era evangélico. Por esta altura, já sabia que ele se chamava Alfredo, e o senhor, sem responder à pergunta indiscreta, desata a falar- lhe da vantagem de ler e rezar a Bíblia… enfim, estavam de acordo em muita coisa… (não em tudo…) e acabou por lhe entregar um pequeno cartão com um link para visitar o site das Testemunhas de Jeová…( Marta sorriu interiormente… já calculava! Eles estudam mais da Bíblia do que nós católicos…).
Marta comprou os sapatos com desconto. O Sr. Alfredo amaciou o sapato, fez até uma saliência na parte superior para permitir encaixar o calo… e sempre conversando sobre Deus lá ficaram amigos. Marta prometeu voltar e levar-lhe um livro de presente. E o Sr. Alfredo convidou- a a voltar no dia seguinte, pois seria o Dia da Mulher e tinha sempre uma flor para cada cliente…
Caminhando para casa, como se agora pisasse nuvens, aliviada da dor no calo e ainda por cima com dois pensos oferecidos pelo sapateiro, Marta lembrava- se de outros dois sapateiros também bem simpáticos (do tempo em que os filhos pequenos estragavam o calçado nos jogos de bola…). Eram eles, o Sr. Mário, muito acolhedor e respeitador, que com graça recitava quadras inventadas por ele próprio, e o Sr. Guilherme sempre com um sorriso de orelha a orelha… e Marta ( encomendando- os ao Céu para onde haviam partido há muito…) pensava como o mundo seria bem melhor, menos violento e assustador se todos se parecessem mais com eles e com este Sr. Alfredo, um sapateiro tão original…