Skip to content

Um sapateiro original

  • Novembro 3, 2024
  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Fátima Fonseca

Marta estava muito cansada naquele dia. Andava num rodopio desde as seis da manhã e àquela hora já se sentia a arrastar os pés, com aquele calo no dedo do pé deformado pela artrose… só lhe apetecia mesmo andar descalça pela calçada … mas não podia!

Dizem que a idade não perdoa e de facto, embora Marta acordasse agradecida pelo dom da vida e pelas pequenas dores intermitentes que apesar de tudo ainda a deixavam mexer- se, andar, ver, ouvir e falar, essas pequenas dores sem importância vinham confirmando os anúncios da brancura do cabelo e das rugas crescentes …naquele dia era o calo… devia estar a anunciar chuva nos próximos dias…Marta olhou para os pés e percebeu que os sapatos dourados estavam velhos e precisava de outros…mas naquela data não dava muito jeito…

No regresso da Carris onde fora carregar o passe, ao passar pela segunda vez naquele dia, à porta do sapateiro de vão de escada daquela rua perto de sua casa, de repente, Marta lembrou -se de entrar e perguntar se teria alguma coisa grande e mole que lhe servisse…

Logo se seguiu o habitual numa qualquer sapataria das grandes: prova, não prova, pega e larga, calça e descalça, atendida delicadamente pelo sapateiro que mal conhecia, Marta de repente deu conta da música de fundo e perguntou, curiosa:

‘ O senhor está a ouvir música clássica? É a Antena 2?’

E o sapateiro, sorrindo, respondeu:

‘ Sim, é a única estação de rádio que ouço enquanto trabalho… sabe? Gosto muito, dá-me calma, serenidade… as outras dão muita publicidade, muito falatório, muita música barulhenta… não gosto! ‘
Marta comentou que também gostava de música clássica e que realmente o excesso de informação e barulho não convidavam à serenidade. E o silêncio também fazia falta… em tempos de tanta guerra, violência e confusão como os nossos…

Então o sapateiro, pelo meio das provas e mostras de sapatos (‘tenho poucos, mas posso arranjar o número da senhora… olhe, e aquela mala ali, se gosta, também lhe posso fazer um preço especial… é um amigo meu do Alentejo que me fornece…’) contou- lhe que sempre gostara de música desde criança, e com 18 anos fora estudar órgão e piano e , como quem não quer a coisa, começa a dizer- lhe que gostava muito dos salmos do Rei David, que sempre voltava a ler na sua Bíblia. Disse-lhe que tocava em teclado… e de repente mostra-lhe, protegido debaixo de um pano, sobre uma cadeira, um grande acordeão.

Espantada, Marta perguntou-lhe se ainda tocava órgão também, e ele disse que sim, só às vezes e tinha ali o acordeão para tocar quando lhe apetecia, já não em grandes grupos, mas em circunstâncias especiais…
Com o à – vontade que permite a intimidade de estar ali sentada numa cadeira à frente de um desconhecido, calçando e descalçando sapatos, de pé ao léu, Marta de repente, perguntou- lhe se ele era evangélico. Por esta altura, já sabia que ele se chamava Alfredo, e o senhor, sem responder à pergunta indiscreta, desata a falar- lhe da vantagem de ler e rezar a Bíblia… enfim, estavam de acordo em muita coisa… (não em tudo…) e acabou por lhe entregar um pequeno cartão com um link para visitar o site das Testemunhas de Jeová…( Marta sorriu interiormente… já calculava! Eles estudam mais da Bíblia do que nós católicos…).

Marta comprou os sapatos com desconto. O Sr. Alfredo amaciou o sapato, fez até uma saliência na parte superior para permitir encaixar o calo… e sempre conversando sobre Deus lá ficaram amigos. Marta prometeu voltar e levar-lhe um livro de presente. E o Sr. Alfredo convidou- a a voltar no dia seguinte, pois seria o Dia da Mulher e tinha sempre uma flor para cada cliente…

Caminhando para casa, como se agora pisasse nuvens, aliviada da dor no calo e ainda por cima com dois pensos oferecidos pelo sapateiro, Marta lembrava- se de outros dois sapateiros também bem simpáticos (do tempo em que os filhos pequenos estragavam o calçado nos jogos de bola…). Eram eles, o Sr. Mário, muito acolhedor e respeitador, que com graça recitava quadras inventadas por ele próprio, e o Sr. Guilherme sempre com um sorriso de orelha a orelha… e Marta ( encomendando- os ao Céu para onde haviam partido há muito…) pensava como o mundo seria bem melhor, menos violento e assustador se todos se parecessem mais com eles e com este Sr. Alfredo, um sapateiro tão original…

Categorias

  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Cultura
  • História
  • Política
  • Religião
  • Social

Colunistas

A.Manuel dos Santos

Abigail Vilanova

Adilson Constâncio

Adriano Fiaschi

Agostinho dos Santos

Alexandra Sousa Duarte

Alexandre Esteves

Ana Esteves

Ana Maria Figueiredo

Ana Tápia

Artur Pereira dos Santos

Augusto Licks

Cecília Rezende

Cláudia Neves

Conceição Amaral de Castro Ramos

Conceição Castro Ramos

Conceição Gigante

Cristina Berrucho

Cristina Viana

Editoria

Editoria GPC

Emanuel do Carmo Oliveira

Enrique Villanueva

Ernesto Lauer

Fátima Fonseca

Flora Costa

Helena Atalaia

Isabel Alexandre

Isabel Carmo Pedro

Isabel Maria Vasco Costa

João Baptista Teixeira

João Marcelino

José Maria C. da Silva...

José Rogério Licks

Julie Machado

Luís Lynce de Faria

Luísa Loureiro

Manuel Matias

Manuela Figueiredo Martins

Maria Amália Abreu Rocha

Maria Caetano Conceição

Maria de Oliveira Esteves

Maria Guimarães

Maria Helena Guerra Pratas

Maria Helena Paes

Maria Romano

Maria Susana Mexia

Maria Teresa Conceição

Mariano Romeiro

Michele Bonheur

Miguel Ataíde

Notícias

Olavo de Carvalho

Padre Aires Gameiro

Padre Paulo Ricardo

Pedro Vaz Patto

Rita Gonçalves

Rosa Ventura

Rosário Martins

Rosarita dos Santos

Sérgio Alves de Oliveira

Sergio Manzione

Sofia Guedes e Graça Varão

Suzana Maria de Jesus

Vânia Figueiredo

Vera Luza

Verónica Teodósio

Virgínia Magriço

Grupo Progresso de Comunicação | Todos os direitos reservados

Desenvolvido por I9