A conhecemos de forma casual. Desejávamos permanecer numa pousada franciscana da Custódia da Terra Santa, no coração da cidade antiga de Jerusalém. Entrei em contato com um sacerdote que acumulava a função de auxiliar em tais agendamentos e por alguma razão passamos a trocar mensagens com Lurdinha.
Semanas depois a conhecemos. Gentil como poucos, nos levou a conhecer os estúdios do Terra Santa News, do qual tornar-se-ia editora. Temos, aliás, o prazer e a missão de veicular no solo brasileiro os vídeos semanais do Terra Santa.
Anos depois ela foi decisiva para que assistíssemos a Missa do Galo na Basílica da Natividade, em Belém. São poucos os convites distribuídos para a celebração e até o último minuto não sabíamos se seria possível. Foi um dos momentos mais belos de nossas vidas.
Diligente e sempre com um sorriso em seu olhar tímido, a convidamos para almoçar conosco na cidade que testemunhou a Paixão de Cristo. Nos disse, então, que combatera um câncer e submetia-se a controles periódicos.
Ligada à Canção Nova e desempenhando da melhor forma as funções de repórter, entrevistadora, locutora em língua portuguesa e editora, volta e meia me ligava. Queria entender o que se passava no Brasil, sempre afundado em escândalos e crises. Demonstrava tristeza pelo destino cruel de nosso país, embretado entre a criminalidade, a roubalheira e as castas que nos dominam.
Quando fui ao Líbano recorri a ela para que pudesse me hospedar num mosteiro franciscano na terra que um dia foi referência de progresso no Oriente Médio, até que progressivas alterações étnica e demográficas, a questão palestina, a presença da OLP de Yasser Arafat e o grande fluxo de refugiados virassem o país de cabeça pra baixo. Graças a Lurdinha pernoitei dentro de uma biblioteca, por assim dizer. O largo corredor que conduzia aos quartos tinha extensos armários com milhares de livros de livre acesso, dentre os quais incontáveis biografias do santo de Assis. Era despertado antes das seis pelos sinos da igreja do mosteiro, na qual assisti algumas missas.
Lá pelas tantas cessaram os contatos com Lurdinha. Imaginei que suas múltiplas funções a impediam. Soube ontem, pela edição do Terra Santa News, que Maria de Lurdes Nunes faleceu, aos sessenta e quatro anos, no dia 6 de dezembro. Em pleno Advento, não esperou mais uma vinda do Menino, cujos eventos descreveu com fervor em centenas de trabalhos. Foi ao encontro do Pai. Pedir que Ele a acolha seria redundância. Pessoas como ela, que viveram em discreta santidade, já tem o visto celeste no passaporte.
Quando soube, lastimei sua morte como se perdesse um parente e rezei, ao mesmo tempo em que agradeci a Deus pela oportunidade de conhecer pessoas como ela, que assumem a missão de manter vivo o Evangelho enquanto aguardam a vinda do Cristo Salvador.
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Antes das últimas eleições, um amigo, que reputo inteligente e dono de alguma cultura, ironizava as menções aos ímpetos comunistas da esquerda brasileira. Usou a tola menção à disputa futebolística entre Brasil e União Soviética para afirmar que aquele fora o momento em que o Brasil estivera mais próximo do comunismo.
Tais chistes empobrecem a discussão e tentam lacrar os contrários, para usar uma expressão de nossos dias. Deixam no ar a sugestão de que uns e outros estão a ver fantasmas. Esquecem a conversa do socialismo moreno, que Brizola augurava na liderança de seu partido, associado à Internacional Socialista, cujo emblema ainda hoje utiliza.
Havemos de reconhecer que Brizola foi possivelmente o maior defensor da educação pública, seja pelo que fez como governador do Rio Grande do Sul, seja pela mesma posição que ocupou no Rio de Janeiro, mas misturou boas intenções com o ovo da serpente de um certo convívio com a criminalidade, a pretexto de justificá-la como decorrência da miséria. Este ovo foi chocado por sucessivos governantes, que nos legaram a condição de narcoestado. Brizola subestimou o antigo adágio, que Marx aliás mencionou em sua obra: “O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”. Ao contemporizar, Brizola inaugurou uma autopista para o inferno.
Como acólito de primeiro escalão, Brizola recrutou o indigenista Darcy Ribeiro, dublê de sertanista. Falante, com oratória sedutora e muitas vezes original, Darcy foi o primeiro reitor da UnB e ministro da educação de João Goulart. Deixou uma obra pouco divulgada – “América Latina: a Pátria Grande”,- na qual realça que as diferenças no mosaico latino-americano são menores que as semelhanças.
Utópico, Darcy profetizava que seríamos uma Nova Roma, comandada pela alegria, pela tolerância e pela solidariedade. Pregando justiça social e o direito dos livres de se verem como são, e não como os dominadores querem que se vejam, ele não escondeu sua admiração pelas ideias do filho de Trier: “O socialismo que Marx prescreveu para os povos ricos, como coroamento e superação do capitalismo maduro, não medrou. Surgiu foi na casa dos pobres, onde o capitalismo fracassou. E surgiu para promover o desenvolvimento, alcançando nesse campo um êxito nada menos que extraordinário”.
Na sequência, Darcy denuncia o capitalismo, ao mesmo tempo em que reconhece uma de suas virtudes: “O capitalismo, por sua vez, reativado pelas empresas multinacionais com sua capacidade prodigiosa de inovação tecnológica e de exploração de recursos onde quer que eles se ofereçam, renova e reforça os vínculos de dependência dos povos pobres, tornando-os mais submissos e lucrativos que as antigas colônias”.
Cresci escutando ataques às elites e inflamados discursos antiamericanos. Uma gritaria inútil, que ecoa por décadas e não nos aprumou, porquanto choramos à margem da estrada que leva ao futuro sem que construamos um novo caminho.
Por mais que procuremos nos distanciar deste fatalismo, que nos mantem no gargarejo do palco em que os atores representam, não podemos fechar os olhos para o que já foi estudado por pensadores como Sérgio Buarque de Holanda, que registrou em “Raízes do Brasil” uma realidade que, transmudada, subsiste no Brasil:
“O padre Manuel da Nóbrega, em carta de 1552, exclamava: “ […] de quantos lá vieram, nenhum tem amor a esta terra […] todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir” . Em outra carta, do mesmo ano, repisa o assunto, queixando-se dos que preferem ver sair do Brasil muitos navios carregados de ouro do que muitas almas para o Céu. E acrescenta: “Não querem bem à terra, pois têm sua afeição em Portugal; nem trabalham tanto para a favorecer, como por se aproveitarem de qualquer maneira que puderem; isto é geral, posto que entre eles haverá alguns fora desta regra”. E frei Vicente do Salvador, escrevendo no século seguinte, ainda poderá queixar-se de terem vivido os portugueses até então “arranhando as costas como caranguejos” e lamentará que os povoadores, por mais arraigados que à terra estejam e mais ricos, tudo pretendam levar a Portugal, e “se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como papagaios, aos quais a primeira cousa que ensinam é: papagaio real para Portugal, porque tudo querem para lá”. Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole”.
Quase quinhentos anos depois, vemos muitos aquinhoados pela sorte a sonhar com residência nos Estados Unidos, onde se instalam e educam os filhos, voltando as costas para o Brasil.
Mesmo rebatendo algumas ideias de Darcy Ribeiro, não há como recusar uma de suas frases: “Na América Latina, só temos duas saídas: ser indignados ou resignados”. Como ele, não perfilo entre os resignados.