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As palavras

  • Janeiro 26, 2025
  • Cultura
  • João Baptista Teixeira

 

Praia quase vazia, pontilhada por caminhantes e pescadores amadores. Lançam a isca com suas varas e molinetes, repousam aquelas num tubo plástico cravado na areia e a partir de então acompanham a extremidade da vara, na esperança de que tremelique com algo pequeno ou sacuda com algo maior.

Mais tarde a praia acolherá uma gente que ainda dorme. Crianças correrão atrás de uma bola, alguns jogarão vôlei na linha do a-bola-vai-mas-não-volta, outros tantos insistirão em jogar frescobol com parceiros que mal sabem segurar uma raquete, observados pela maioria sentada, boa parte da qual beberica algo que anestesiará seus sentidos, conferindo aos momentos abandono e o sabor da liberdade.

Passo incógnito por um vizinho, que deve ter amanhecido na praia. Com sua pronunciada barriga e passos miúdos, me vem à mente o estereótipo do funcionário público, daqueles protegidos por uma placa afixada em paredes e balcões que lembra ao contribuinte que desacatar um servidor público é crime.

Prefiro a pesca com caniço, sem perder o contato com ele, à espera da estupenda sensação de um peixe fisgado em águas turvas, nas quais a presença de peixes é incerta.

Incontáveis os livros nos quais busquei tirar da água de suas páginas uma frase brilhante, um parágrafo inesquecível, destes que reproduzimos vida afora em conversas no mais das vezes inúteis nas horas vadias. Cada vez mais lastimo o tempo perdido em banalidades, ouro em pó que desperdiçamos nos dedos tolos da nossa mente.

Pois coloquei uma vez mais o anzol das águas de “As palavras”, de Sartre. Autobiográfica, a obra revela um autor muito imaginativo, esgrimista exímio com as palavras, que entretanto não atinge o ápice de um touché. Revirando suas páginas encontro um trecho que assinalei. Sartre perdeu o pai muito jovem e sua mãe retornou, com ele, à casa paterna. Criado pelos avós e pela mãe viúva, deplora a orfandade precoce e tudo observa em seus tenros anos:

“Meu avô nunca soubera fazer contas: pródigo por desleixo, generoso por ostentação, acabou por cair, muito mais tarde, nesta doença dos octogenários, que é a avareza, efeito da impotência e do medo de morrer”.

O livro melhora em sua última quinta parte, mas ainda assim deixa no leitor a sensação de que leu um emaranhado mal costurado, enfadonho, oscilando entre a frustração e a autoexaltação do biógrafo, fiel ao pessimismo e à sua máxima de que o homem é uma paixão inútil …

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Recentemente um deputado da oposição gravou um vídeo, considerado cirúrgico por muitos, que bateu o recorde, ultrapassando a marca de trezentos milhões de acessos. Discorreu sobre uma normativa que obrigaria os que fizessem transferências pelo meio instantâneo oferecido pelo Banco Central, a partir de um determinado valor, a prestar contas.

O deputado foi muito além, acusando o governo de exigir a transparência que ele, governo, não pratica no que diz respeito a certos gastos, com sigilo de cem anos. Sou levado a crer que o vídeo alcançou tamanha repercussão porque traduziu a desconfiança de milhões em relação ao propósito do governo que, rangendo os dentes, voltou atrás.

O mais surpreendente foi a posição de alguns jornalistas, que atacaram o deputado, sugerindo que ele cometera um crime ao criticar a normativa, incitando o povo. Foi surreal. Até parece que tais jornalistas desprezam a liberdade de expressão, sobretudo de um deputado federal, que goza de imunidade para manifestar-se.

O episódio me fez lembrar de Marcela, em “Dom Quixote da la Mancha”. Formosa, aproxima-se dos que pranteavam Crisóstomo, que cometera suicídio por não ter seu amor correspondido por ela. A Marcela de Cervantes argumenta com sabedoria: “O verdadeiro amor não se divide, há de ser voluntário, e não forçado. Sendo assim, como creio que é, por que quereis submeter minha vontade pela força, obrigada só por dizerdes que me quereis bem?”.

Quando vejo a intolerância com a oposição, pelas idéias contrárias, quando diviso a hipocrisia da “democracia dos sovietes”, receio a insônia, da qual não padeci até hoje e ainda que bovinamente rumino as palavras de Ortega y Gasset: “Esse é o maior perigo que atualmente ameaça a civilização: intervenção estatal, absorção pelo Estado de todo o esforço espontâneo da sociedade, isto é: da ação histórica espontânea a qual, no longo prazo, sustenta, alimenta e impede os destinos do homem”.

O maior perigo é perdermos a liberdade enquanto aqueles nos quais sequer confiamos vociferam que a defendem. É de perder o sono.

As palavras não podem ser meros gatilhos mentais a serviço do engano.

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