Assisti o filme “Franco Atirador” há trinta anos. O talentoso Robert de Niro – numa época em que por amor à profissão talvez fizesse filmes até de graça,- protagoniza um drama vivido pela juventude norte-americana, sobretudo a parcela pobre e negra. Amigos celebram o casamento de um deles, com camaradagem, muita alegria e bebida. Terminam embriagados, como jovens normais que ainda procuram entender os limites da existência, que teimam em ultrapassar. Fim de festa, fazem alguma arruaça e na cena seguinte a turma está atolada no Vietnã, na sucursal do inferno então instalada na península da Indochina. À época admirei muito o filme. Bons atores, alguma poesia, bom ritmo e Cavatina, a trilha musical delicada e comovente.
Anos mais tarde assisti “Corações e Mentes”, uma película que desnuda a crueldade de uma luta desigual na qual nem agente laranja nem o poderio militar foram capazes de vergar o Vietnã. Não foi o comunismo quem venceu, foi a fibra de um povo. Fustigados pelo alto, vitimados por um holocausto que não colocou ninguém em Haia, os vietnamitas de hoje não guardam rancor de seu agressor. Sua visão religiosa os impele numa direção surpreendente para um mundo que aplica a Lei de Talião modernizada, digamos assim, com multiplicador. A despeito de seu fundamento grosseiro, à época em que surgiu a tal lei representou um avanço. Sua origem estaria no Código de Hamurabi e propunha os rudimentos de sociedade, estabelecendo um critério de proporcionalidade. Quando se trata dos mais poderosos, entretanto, não é olho por olho, nem dente por dente. É um dente por várias arcadas dentárias. O episódio de 11 de setembro, por exemplo, pavoroso em si mesmo, obviamente reprovável sob todos os aspectos e covarde, por conta de duas torres já ocasionou a destruição do Afeganistão. Da mesma forma para cada judeu muitos palestinos foram mortos. O direito vingativo da Lei de Talião é herança de uma evolução civilizatória da Babilônia, atual Iraque, mas não é condizente com o perdão da civilização cristã, nem com bondade, misericórdia e compaixão. A propósito, não se encontra “Corações e Mentes” com facilidade e os catálogos de locadoras de vídeo sequer o mencionam.
Na mesma linha de certa penitência pelo tanto que destruíram, pelo muito que mataram, os norte-americanos produziram alguns filmes relevantes, como “Apocalipse Now” e o superior “Platoon”, em que o personagem representado por Charlie Sheen revela a sensibilidade que se espera de um jovem que não tenha perdido completamente os referenciais humanos. Um jovem que não tenha se transformado numa fera, pelo menos não por inteiro. A história explora a crise moral de um rapaz que abandona os estudos e segue como voluntário para a guerra, entrando num doloroso conflito de quem trava duas batalhas, uma das quais é contra si mesmo e seus companheiros. Ninguém é bom soldado se não acredita integralmente na causa pela qual luta. A lavagem cerebral tem que ser completa se a causa não é realmente justa.
Tais filmes têm o poder de tornar presente realidades distantes de nosso cotidiano, revelando que a civilização se constrói com as pedras da barbárie e com ela por vezes quase se confunde ou pelo menos se intercala. Nenhum destes trabalhos da sétima arte, entretanto, causou sobre mim sequer uma fração do impacto que tive ao ler “Nada de novo no front”. Seu autor, Erich Maria Remarque, abandonou os estudos e tomou parte da primeira guerra mundial, sendo ferido três vezes, numa delas gravemente. Sua narrativa – sem o truque infalível das trilhas sonoras, a salvar parcialmente filmes medíocres,- é comovente, sem ser piegas em momento algum:
“Os professores deveriam ter sido para nós os intermediários, os guias para o mundo da maturidade, para o mundo do trabalho, do dever, da cultura e do progresso, e para o futuro. Às vezes zombávamos deles e lhes pregávamos peças, mas, no fundo, acreditávamos neles. À idéia de autoridade da qual eram portadores, juntou-se em nossos pensamentos uma melhor compreensão e uma sabedoria mais humana. Mas o primeiro morto que vimos destruiu esta convicção. Tivemos que reconhecer que a nossa geração era mais honesta do que a deles; só nos venciam no palavrório e na habilidade. O primeiro bombardeio nos mostrou nosso erro, e debaixo dele ruiu toda a concepção do mundo que nos tinham ensinado.”
Seu livro é um grito implícito de pacifismo, a tal ponto eloquente que Remarque foi perseguido pelo nazismo que nascia. Sua narrativa da guerra de trincheiras, do uso do gás mostarda que queimava os pulmões de quem o aspirasse, desafia nosso conformismo bovino e tira a mordaça da pergunta que não quer calar: afinal, que tipo de animal é o homem?