Quando o navio partiu de Rhodes rumo a Patmos, estávamos sentados numa janela do corredor interno, comendo algo e tomando um resto de vinho tinto de garrafa que abríramos na noite anterior. Não havia muita gente e o início da viagem foi muito agradável. Eram cinco da tarde e o mar estava calmo. Não fossem as vibrações perceptíveis numa embarcação um tanto ultrapassada, mal diríamos que estávamos a navegar. Passávamos ao largo de várias ilhas gregas enquanto a tarde já mostrava cansaço.
Passeando pela parte externa algo me chamou a atenção. Um cidadão dos seus cinqüenta anos, com óculos de aro grosso, algo como noventa quilos distribuídos em um metro e setenta, cabelo negro comprido e barba abastada, acenava para a margem. Com os dois braços erguidos, como quem informa ao juiz que o jogo acabou. Dirigi meu olhar para a margem, curioso pelo contato inusitado. Afinal a margem estava a mais de quinhentos metros. Pensei que o vinho alterara meus sentidos porque nada vi. O camarada, que batizei de Nikos, entretanto, agitava os braços, como de certa forma fizemos desde nossa chegada no país que inventou a democracia. No hotel que deixamos para trás, curiosos pelo andamento da eleição geral na Grécia, a recepcionista nos disse que estava desencantada com a política. Teria direito a votar em Atenas, seu domicílio eleitoral, mas se exercesse tal direito não votaria em nenhum candidato. Porque não via diferença real entre eles. Porque parece que nenhum deles pensa no bem comum. Como se houvesse um plano global, que pasteurizou tudo. E as formalidades são pouco mais que fachadas.
Quando nossa embarcação aproximava-se da ilha de Cós, voltei ao lado externo para bater algumas fotos. Durante a lenta manobra para atracar, vi Nikos abanando, com o mesmo vagar. Bem, enfim encontrou quem procurava, pensei, ainda que aparentemente não houvesse ninguém na direção em que olhava. Afastei-me, um tanto temeroso de que ao passar em sua linha de visão pudesse ser confundido com o conhecido que esperava encontrar. Seria como a pessoa errada na hora atrasada.
Lembrei-me da história de Diógenes, o Cínico. Com uma lanterna à mão, em plena luz do dia, vagava pelas ruas atrás de homens verdadeiros, que no entendimento de então significava homens auto-suficientes e virtuosos. Atribui-se também a ele um episódio com Alexandre, o Grande. Alexandre teria perguntado a Diógenes o que poderia fazer por ele. Alexandre estava numa posição tal que fazia sombra a Diógenes. Este, olhando para o astro rei, teria respondido: “Não me tires o que não me podes dar!”. Ao escutar seus oficiais debochando de Diógenes, o grande líder, que fora aluno de Aristóteles, teria então dito “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”.
Cinismos à parte, voltei para meu lugar, com o interesse para os grandes pensadores gregos. Minha esposa me informou que a próxima parada, a ilha de Leros, fora local destinado a doentes mentais. Não confessei a ela mas na hora imaginei que Nikos desembarcaria em Leros. Já era noite quando chegamos. Fui até a amurada. Pessoas se acotovelavam no pequeno porto mergulhado na escuridão, como se estivessem desesperadas para escapar. Poucas luzes na ilha davam a certeza de que Leros não estaria em nossa lista jamais. Dali por diante não vi mais Nikos no navio, como também não vimos muita espontaneidade nem gente tocando música pelas ruas. Esta manifestação do espírito restringe-se aos ambientes familiares ou pagos, de tal sorte que ficamos sem este regalo na terra de Zorba e Syrtaki.
Em Atenas perambulamos pelos marcos da civilização, particularmente interessados no período clássico. Como lemos no Museu Arqueológico Nacional, “os trabalhos dramáticos dos grandes poetas – Ésquilo, Sófocles e Eurípedes,- expressam o caráter trágico da natureza humana na sua luta para vencer seu curso prescrito e atingir a eternidade”. Os gregos foram grandes.
Numa praça de grande movimento um grego nos abordou quando escutou português. Falamos um pouco sobre tudo e ele satirizou os turistas que esperam ver Platão, Sócrates e Aristóteles pelas ruas. Os gregos de hoje são outros, arrematou. Não há dúvida. Os de hoje lêem Paulo Coelho.
Como pode, perguntei. Respondeu-me que a explicação é simples: Coelho tem um estratagema comercial que coincide com o mercado editorial e ler seus livros é algo tão leve quanto ler um jornal. Quase disse a ele que há um terceiro fator: Coelho não se ampara em juízos de valor, o que não o incompatibiliza com nada. Seus livros são placebos. Vendo os títulos anunciados nas livrarias, os programas televisivos e as manchetes nas bancas de jornais, entendi que de fato os gregos antigos não andam mais por aí. Foram mais que esquecidos. Foram de certa forma fraudados.
Fiquei a pensar como homens tão inteligentes como os que andavam pela Ágora, os que integravam a Academia, podiam crer nos oráculos, como o de Delfos. Já naquela época as previsões tinham um malicioso duplo sentido. Creso, rei da Lidia, consultou o oráculo de Delfos antes de atacar a Pérsia. A resposta foi “se atravessar o mar, um grande império será destruído”. Creso achou a resposta favorável e atacou. O oráculo estava correto: Creso foi fragorosamente derrotado e seu império destruído.
No terceiro dia, quando nos encaminhávamos para uma estação de metrô, ao atravessar a rua não contive o riso. No outro lado da rua, aguardando a mudança do semáforo, estava ninguém mais ninguém menos que Nikos. Quando todos se puseram em movimento, o vimos cruzar com a mesma roupa. Não acenava. Mas sorria, como quem acredita ter visto algo familiar, ou encontrou uma posição melhor para acenar. Minha esposa até me disse que se também não o houvesse visto não teria acreditado se contasse a ela sobre o reencontro. Foi muita coincidência, afinal Atenas tem milhões de pessoas. E julgávamos Nikos em Leros. Depois de atravessar a rua, virou-se, como quem tenciona retornar, como se estivesse a andar em círculos no deserto das ruas de hoje. Não o vimos mais.
A Grécia de hoje, dona de ruínas que são realmente patrimônio da humanidade, é distante do que foi. Domínios estrangeiros, ataques e mais de dois mil anos fizeram grandes estragos. Mas a mudança ultrapassa o material. Um dos que semearam a mudança pode ter sido o próprio Sócrates – tão decantado comercialmente quanto as camisetas de Che Guevara, um símbolo capitalista às avessas. Autor de “só sei que nada sei” – frase pretensamente humilde e sobretudo contraditória,- Sócrates tornou-se patrono do relativismo, que hoje assola o país e o mundo, gerando decadência moral sob o manto da modernidade. Fiquei a imaginar que Nikos, barbudo como Platão, testa larga como Demóstenes, distraído como Arquimedes, grego como Pitágoras, pode ser ele próprio como uma lanterna, a vasculhar horizontes. Errante e sempre acesa, à procura de uma Grécia perdida. E talvez irrecuperável.