Ela tinha acabado de concluir o curso de filosofia e estava preparando viagem, para uma extensão dos seus estudos de teatro, em países orientais, quando eclodiu a Primavera de Praga, que ela vivenciou nos seus primórdios.
– Minhas preocupações intelectuais me levaram a estudar Filosofia, mas meu coração sempre foi das artes cênicas – Nô me conta. E explica a origem do seu apelido, que é o Teatro Nô, em que ela se especializou.
E nesse contexto ela conheceu (por puro acaso) alguns brasileiros que andavam por lá e a convidaram a participar dum projeto, quando ele ainda não passava de uma ideia embrionária. Ela não topou, não sentiu interesse e logo percebeu as tensões internas que dividiam o grupo. Mas depois de um ano, ao voltar para Minas, sem perspectivas, mudou de opinião e decidiu vir para cá, como colaboradora. E se ofereceu para ajudar na preparação dos novos integrantes.
Nô lê trechos do regulamento elaborado recentemente, se detendo nas qualidades morais que se esperam dos novos quadros:
ter um estilo de vida simples e de trabalho duro
desenvolver a confiança em si mesmo
estar decidido a lutar até o fim
enfrentar e vencer todas as dificuldades
viver, pensar e combater a serviço da causa
– E como se faz para desenvolver a confiança em si mesmo? Isso o regulamento não explica… É uma ingenuidade de alguns dirigentes achar que qualquer um vai estar em condições de cumprir com isso sem uma preparação adequada – ela diz. A função da inteligência será ajudar nesse sentido. A ideia é criar aqui um centro aberto ao público em geral, que ofereça cursos de do-in, yoga e meditação, ministrados pela Lena. Ao mesmo tempo reunir um grupo base e começar os ensaios de uma peça Nô iniciática, que será a atividade central na preparação (sigilosa) dos novos quadros.
– O teatro Nô tem sua origem no sarugacu da China, e um dos seus elementos mais fortes é o uso de máscaras. A máscara serve para formar um rosto, permitindo ressaltar traços e expressões. Por exemplo, eu lhe ponho uma máscara de perdedor, expressando confusão e desalento… Ou ao revés, lhe ponho uma máscara de traços serenos, que mostra o rosto de alguém que examinou todas as possibilidades e já definiu seu caminho, assumindo a responsabilidade, em paz interior e aceitação de tudo o que vier pela frente…
E ela me explica que esse teatro de máscaras – que foi tema do seu trabalho de dissertação em Praga – tem sempre três componentes básicos:
– o canto com narração e diálogos do coro.
– a dança dos personagens baseada em mímicas, que ilustram a narração.
– a orquestração, o acompanhamento musical.
A peça que ela pretende montar é no estilo dos genzai Nô, em que o cenário mostra o mundo real e presente, ao qual se contrapõe o mundo psíquico, dos impulsos do inconsciente.
– Acaba de chegar uma nova integrante, e trouxe na mala perfumes e seus melhores vestidos de festa. Hum… Nas discussões ela falou que não basta a instrução de luta, de trabalho na roça… Ou seja, não basta o real exterior, é preciso que se integre também o ser interior de cada um. Porque senão, o que se está formando é uma armata Brancaleone fadada à derrota. Alguém em ação tem que empurrar para baixo e administrar sua insegurança e sua angústia, enquanto se desloca na mata com sua mochila e seu equipamento.
Mas sua análise não foi bem recebida, teve até um indignado dizendo que a própria ação irá despertar as melhores qualidades.
– Isso é um absurdo, na hora do pega o que mais se manifesta é o medo e a confusão – ela opina. Mas é o que se tem, pelo menos aceitaram a ideia de criar o centro de preparação.
– O homem moderno é um ente que vive fugindo de si mesmo, tem medo de encarar a angústia do seu mundo interior, em sua essência ele é um nada sem rosto, um não-ser, um vazio – diz ela num inesperado tom cavernoso.
E parece querer levantar e continuar o discurso de pé. Mas isso não acontece, ela respira fundo e retoma seu ar fleumático, pra me falar do Vietnã.
O ditador sul-vietnamita Diêm era um resquício corrupto do colonialismo francês, era anticomunista e católico, todos no seu exército foram obrigados a se converter ao Vaticano, num país de maioria budista. Junto com a madame Nhu – a Borboleta de Ferro – e o chefe do serviço secreto eles massacravam os monges e a população civil, sempre sustentados pelos americanos, que temem o efeito dominó…
Aí o monge Quang Duc caminhou até perto do palácio do governo, sentou na posição de lótus e começou a meditar, enquanto um companheiro seu derramava um galão de gasolina sobre ele.
Lá pelas tantas o monge riscou um palito de fósforo e acendeu sua fogueira…
Enquanto seu rosto escurecia e seu corpo em chamas encolhia, o centro de Saigon foi se impregnando do cheiro de carne queimada. Mas ele ficou sentado, imóvel e indiferente, até cair morto. Um jornalista filmou tudo, e o sacrifício do bodisatva desencadeou um movimento que culminou na deposição e no assassinato do ditador, por seus próprios oficiais.