Acordei com alguém bulindo no saco de dormir. Já estava todo mundo de pé no convés, fui fazer a fila do café. Na minha frente estava o Marcondes, com as mãos nos bolsos. Ele tem um pouco mais de um metro de altura e a voz e as feições são de um guri de oito anos. Mas tem 22 anos e faz o segundo ano de engenharia.
A bordo as horas se dividem entre as refeições e a contemplação das margens e das pequenas pirogas dos pedintes, que se anunciam com gritinhos agudos, que me fazem lembrar certas aves sertanejas. São crianças que parecem ter entre 7 e 10 anos e vêm ao encontro do Lauro Sodré pedir comida. Os passageiros jogam sacos onde amarram alimentos, roupas e dinheiro, que os pedintes vão buscar, lutando com as ondas provocadas pelo navio.
Bebe-se e joga-se cartas em frente ao bar. Também ensaiaram uma dança, mas não teve grande sucesso.
Othon organizou um torneio de xadrez com quatro tabuleiros, no salão à ré do terceiro andar. Não quis me inscrever, mas propus realizar uma simultânea no dia seguinte. Joguei às cegas, foi um passeio, eram todos muito pixotes. Algumas pessoas tem adoecido, atribuindo-se os males à água que se bebe no barco, que é tirada do rio. Uma senhora da primeira classe vomitou muito e o doutor Juraci foi no camarote ver ela. Eu tenho tomado sem muito problema.
Bati um papo com as alemãs, que têm camarotes na segunda classe. (Junto com elas viaja um rapaz que está percorrendo o mundo em motocicleta, é pedreiro de profissão.) Uma das alemãs tocou Mozart e Bach na minha flauta. E me fez perceber que eu apenas sopro. O que não me impede de continuar soprando O Silêncio no convés à noite, como tenho feito.
Tem um cara, já meio de idade, deve ter cinquenta ou mais, que se tornou alvo das chacotas do pessoal, não sei o nome, chamam ele de Bocomoco. Ele anda sempre de terno e gravata e é incrivelmente atrapalhado. Uma noite dessas, ao se preparar para dormir, deu uma reviravolta imprudente e caiu da rede. Foi aquela zoeira geral.
A americana Meg Larfan, que é estudante de história da arte em Nova York, desceu em Almeirins, cidadezinha situado nas primeiras terras mais elevadas e não alagadas que a gente viu. Parece que lá têm missionários ianques, me falou de uma irmã Doroty, sua amiga.
Passamos por Santarém e Óbidos, além de dois ou três portos menores. Não foi possível conhecer Santarém porque o navio não encostou, parando apenas por uma hora a certa distância do cais, de madrugada. Um pequeno barco auxiliar veio trazendo passageiros adicionais e voltou levando os que desembarcavam. Foi no encontro das águas do Tapajós com as do Amazonas, o barco estava dentro da faixa do Tapajós.
Ilhas decotadas, terras alagadas – o rio está ainda na enchente periódica -, se torna difícil distinguir solo firme e seco. Constantemente passam por nós sargaços feitos de algas e capins, sobre os quais as garças gostam de navegar de carona. Desde Óbidos se vêm grandes árvores de copa densa com frutas bem vermelhas colorindo as margens.
O Carcará apelidou o aeronauta de Bicão, depois do episódio que passo a relatar. Após o almoço sempre servem algum doce. E ali estávamos, seis à mesa, e trouxeram pratinhos com doce de buriti. O aeronauta mais que depressa arrecadou quatro para si… Todo mundo ficou piscando os olhos, sem acreditar no que via.
Aí resolvemos sacanear ele, fomos para um canto do convés rabiscar uma letra sobre suas façanhas. Para ser cantada com a música de um xote conhecido. E de noite no salão repleto, esperamos ele entrar e pedir a cerveja. Ficamos vigiando, e quando o aeronauta levou o chope à boca, nosso coro entoou a plenos pulmões:
Eu quero doce de buriti para comer Eu quero doce de buriti para comer
O meu problema ele tem que resolver (2x) O meu problema ele tem que resolver (2x)
Eu sou o Bicão Eu sou madurão
Mas já fui aeronauta E me custa levantar
Tornei-me um comilão Mas tem a tal função
E sou muito peralta Que eu não posso dispensar
Quando estou à mesa O doutor Juraci
Percam toda a esperança Onde eu fui me consultar
A sobremesa Receitou buriti
Tem que vir pra minha pança Para me incrementar
Eu quero doce de buriti…
A cena foi apoteótica, especialmente quando o Carcará foi dançar diante da mesa do aeronauta, lançando a cabeça para trás e imitando o canto do seu xará de plumas. Bicão acabou indo comprar quatro latas de goiabada e nos trouxe, para contemporizar.