– Lá no bar Graças a Deus tinha aqueles caras conversando num sotaque capenga de estrangeiro. Aí veio sentar
com eles um terceiro, e me pareceu que a chegada dele te deixou meio… sei lá, chateado, pode ser? Tu conheces aquelas figuras? (Eu havia decidido não revelar que conhecia o Bicão da viagem no navio branco.)
– Aquele com jeito de alemão é o Tatu-canara, um personagem meio folclórico das ruas e bares de Manaus – diz
Alceu. Ele conta a todo mundo que é filho do cacique de uma tribo de índios isolados, e sua mãe é uma freira alemã que foi raptada por eles, numa missão do Acre. E conta coisas incríveis da vida na tribo, quando começa a falar não consegue parar.
Mas o aspecto dele é de um alemão puro, com exceção talvez do cabelo escuro e dos olhos não azuis.
– Certo, esse Tatu-canara tava ali com o outro, que achei com jeito de ser americano. Aí entrou aquele cara
grandão…
– O grandão é o Mauroak, o outro eu não conheço – atalhou Alceu, ganhando um ar de poucos amigos. E dizem
por aí que o Tatu-canara é informante do Mauroak, que protege ele.
– Como assim?
– É que o Mauroak dirige os comandos de caça aos subversivos daqui.
E Alceu baixa os olhos, lembrando algo marcante.
– Faz algum tempo, eu trouxe o L. C. para o abrigo, conheci ele na Praça da Saudade. Ele não tinha onde ficar,
enquanto batalhava pra viajar de volta ao sul. Tinha ido até a Califórnia e voltou atravessando a Colômbia, em Letícia
conheceu um pessoal e veio no barco deles até Manaus, me contou. Tava tudo muito bem, eu gostava de escutar suas
histórias, dos lugares por onde andou.
Aí no terceiro dia apareceu aqui uma viatura militar com o Mauroak, que eu não conhecia, e mais alguns, todos
armados. E levaram o L. Foi tudo muito rápido, quando me dei conta já tinham enfiado ele na viatura e estavam ligando o motor para partir. Ainda perguntei ao Mauroak o motivo da prisão, o que ele tinha feito? – Só queremos fazer umas perguntinhas – foi toda a resposta que ouvi. Passaram-se vários dias sem notícias e resolvi ir até o quartel, solicitar informações. Me fizeram esperar várias horas, até que veio um sargento me dizer que o Mauroak não podia me receber.
– E acho melhor você não se meter nesses assuntos – me aconselhou o sargento em tom de ameaça… Dois dias
depois seu Generino vai à cidade de compras, e alguém lhe conta que o L. tinha morrido na prisão, em circunstâncias não esclarecidas, provavelmente suicídio…
Alceu faz uma pausa e me fita, como que pra ver o efeito do seu relato em mim.
– Sabe como é, prendem, torturam e depois “suicidam” o infeliz, que não pode contar com nada, nem lei nem
ninguém em seu auxílio – continua ele. E agora você pode entender o que baixou em mim, quando o Mauroak apareceu no bar Graças a Deus.
Assenti com a cabeça em silêncio e pensei que estava certo em não abrir que eu conhecia o Mauroak de antes. Não
queria me envolver em complicações. E na verdade eu só tinha conhecido o Bicão, o agente secreto exterminador de
subversivos recém agora me estava sendo apresentado. E eu queria ficar o mais longe possível dele.
Alceu interrompeu meus pensamentos.
– L. me falou que era gaúcho, como você. Me contou coisas da sua cidade, as subidas num morro… E as pescarias
no rio… Ele era nascido em Monte Claro… Ou Montenegro… Tem alguma cidade com esse nome por lá?
– Quê!? Eu sou de Montenegro! – exclamou uma sombra dentro de mim. Um súbito nó na garganta misturado com
um sentimento gelado de impotência me entorpeceu por dentro. Mas fiquei na minha, jogando verde pra colher maduro.
– Monte Claro nunca ouvi falar. Mas Montenegro sim, está a uns 70 quilômetros de Porto Alegre.
De repente nosso papo tinha se transformado, e eu queria saber mais detalhes do ocorrido.
– Mas venha cá, como era o L., era militante de uma organização subversiva?
– Não parecia. Era um cara pequeno, de jeito manso, cabelo meio encaracolado, ar sonhador…
A descrição sumária feita por Alceu batia com um amigo meu, que eu conhecia desde a infância. Que a coisa de
uns dois anos atrás tinha me falado do seu plano de viajar a San Francisco…
Saber da sua morte numa prisão ali em Manaus…
Senti uma aflição misturada com desconfiança, será tudo verdade o que Alceu me conta? Mas se fosse, melhor era
ficar de fora do assunto. Vivendo num regime de exceção não se pode nunca abrir a guarda e…
Alceu meio que se atravessou em minhas reflexões, como se tivesse lido meus pensamentos.
– É isso aí, o caso do L. mostra bem o que é viver num país com ditadura, como o nosso, onde um cidadão pode
ser preso sem processo judicial por agentes secretos, e lei nenhuma nem ninguém o pode salvar de ser torturado até morrer na prisão – ele falou.
É isso aí, pensei, um montenegrino morre numa prisão imunda de Manaus, longe da sua gente, completamente só e
nas mãos de torturadores covardes… Tomara que a história esteja mal contada… Ou talvez seja outra pessoa… E pode ser até que Alceu seja um informante disfarçado, interessado em saber saber mais de mim e das minhas convicções…
Facilmente a paranoia pode assomar, pensei… Em todo caso, achei melhor não revelar que sou montenegrino.
Naquela noite não dormi bem, e perto do amanhecer tive um sonho intrigante.
Estava em Montenegro, na nossa casa, diante do nosso chalé, e perscrutava o céu noturno, de onde vinha ao longe
pela esquerda um ronco parecido a um avião de guerra. Eu estava tranquilo, aquilo não nos dizia respeito, as bombas cairiam em outra parte. Mas de repente o objeto aéreo dá uma guinada e vem direto para o nosso lado. Quando se torna mais visível, vejo que é uma espécie de monstro voador, com a forma de um peixe descomunal de cor verde com estrias negras.
O monstro se detém sobre o terreno do nosso vizinho, paira uns momentos no ar, se contorce e dispara como uma
flecha para baixo, indo se encravar na terra, ao lado do nosso chalé. E ali fica, movendo sua cauda enorme, e numa rabanada para a direita deita por terra o galpão do vizinho, que continha prateleiras ainda cheias de velhos medicamentos da primeira farmácia da nossa cidade.
Então sim, me vem o pânico, a próxima rabanada será para a esquerda e irá desmantelar nossa casa. Aí desperto.