Busquei minhas coisas e desci novamente pelo atalho, cruzei a cerca de tábuas e me detive para olhar uma última vez aquele cenário. Havia um brejo de coqueiros alagados cheio de sapos cantando, onde a usina criava reflexos esverdeados. Começava a escurecer.
O motor Ferreira estava com uma tábua estreita esticada do convés até o barranco, fui me equilibrando nela e embarquei. Dentro do barco não avistei ninguém, mas ao pousar a mochila no chão uma porta lateral se abriu na ponte de comando e um homem de pele acobreada veio na minha direção, era o dono do barco. Me apresentei e ele moveu o braço e apontou para a carga de sacos empilhados no meio do convés, dizendo que eu podia buscar um lugar ali. E seguiu andando, ele ainda tinha que ir à cidade resolver questões, o barco só ia partir de madrugada. A parte central do barco estava tomada por pilhas de sacos de cereais e grandes fardos de tecidos, do porão até pelo menos um metro de altura no convés. Me acomodei num canto e fiquei olhando o matagal que margeava o igarapé, repassando aquele dia da partida. E logo ferrei no sono.
Acordei com a embarcação avançando na noite. Somente brilhava luz na ponte de comando, junto da proa. Desci de onde estava tateando no escuro e fui me apoiar na balaustrada do barco. Dali podia ver o sr. Ferreira de costas, agarrado à roda do leme, conversando com um homem moreno e magro, de baixa estatura. Não dava pra entender do que falavam, o barulho do motor abafava.
Estranho sentimento. Uma sensação de extrema intimidade com as águas. E ao redor e no alto a escuridão é total, nada se vê do céu com seus astros. E essa escuridão se completa no pretume das águas, nada se vê da descomunal massa líquida que o barco vai cortando. É como estar imerso em um caos fluído e escuro…
E me vem à mente um episódio da infância. Eu tinha três anos e ia caminhando agarrado na saia da mãe, que levava nos braços um bebê, estávamos cruzando a ponte sobre o rio Caí, em tempo de enchente. Só que nada disso nem do mundo eu tinha consciência, o único que existia era a mãe e a saia dela em que eu me agarrava. Aí por algum motivo ela se deteve por uns momentos e meu olhar resvalou entre os balaústres da ponte… E quando vi aquele turbilhão de água barrenta lá embaixo, entrei em transe. Nada mais existia, só aquela água me envolvendo. E fui transportado para um caíque que estava amarrado na margem esquerda. E lá fiquei para sempre, desterrado num limbo aquático…
Parecia para sempre (do outro lado da ponte era Pareci), até que um safanão da mãe me puxou de volta do transe, e continuei caminhando. (Mais tarde, quando escutava falar do dilúvio universal e de outros relatos míticos tematizando o poder das águas, sempre lembrava daquele primeiro transe que vivenciei na ponte.)
„Água, tu és a fonte de todas as coisas e de toda existência!“, diz um texto sagrado da Índia. As águas simbolizam a substância primordial da qual tudo o que tem forma e vida nasceu. Na antiga Babilônia, tudo havia nascido de um caos aquático primordial, apsû e tiamat. (E preparando nossa peça de teatro, Alceu me contou um mito dos índios Carajás, que fala do „tempo em que ainda estavam na água“. Também abordamos a lenda indígena que conta como veio a noite para o mundo.
No princípio não ficava escuro
É que ainda não tinha vindo a noite
Ela dormia no fundo das águas
Da sua senhora, a Cobra Grande…)
O simbolismo imemorial da imersão na água como instrumento de purificação e de regeneração se encontra nas antigas mitologias de muitos povos, e foi adotado pelo cristianismo no rito do batismo. Simbolicamente, há uma morte pela imersão na água, seguida de um renascer purificado e renovado. Também eu agora, me sinto imerso nas águas amazônicas, e suspeito que no final desta viagem – se sobreviver -não serei a mesma pessoa…
Mas na real, o sentimento que experimento aqui, neste barquinho de carga singrando na escuridão deste dilúvio de fato, não é transe. É uma mistura de fascínio e angústia. O farol da cabine de comando só consegue clarear um pouco, dois ou três metros de água à nossa frente. E se vem ao nosso encontro um desses muitos troncos de árvore que boiam ao léu neste rio imenso… Aí adeus tia Chica.
De repente percebi um pequeno ponto de luz tremeluzindo ao longe. Com mais algum tempo a luz se firmou e foi crescendo, se aproximando. Eu estava com os olhos cravados nessa aparição, tentando inutilmente ver algo mais além da luz. Então, quando estava passando por nós, vi que era uma barco menor que o nosso. Ele passou, a luz sumiu e tudo ficou escuro novamente…
Aí quis voltar pra cima da carga, pra me refugiar no sono, que também tem algo maternal. E ao me deitar sobre os sacos de cereais, me pareceu que havia mais alguém ao lado, dormindo sobre os fardos.
Despertei com o dia clareando. À minha esquerda o companheiro desconhecido já estava sentado, olhando as águas, segurando os joelhos com as mãos. Se chama Laurindo, veio tentar a sorte na Amazônia, depois de „cansar de só ver cana e seca“ na terra dele. Andou pelo rio Purus, trabalhou no Acre, onde apanhou malária e quase “se lascou”. Agora ele volta pra casa. Porque é casado e a família não pôde vir. De Porto Velho a São Paulo, e de lá para Alagoas, ele quer chegar “sem tempo nem hora”. É um homem moço, de olhar corajoso e inteligente, gosta de ler. Ficou emocionado quando contei algumas coisas de quando estive em Maceió. Me contou que o poeta Jorge de Lima é alagoano.