A mensagem só dizia: ‘Alicinha, vem depressa. Avó Ju mal no hospital!’
Alice voltava agora enfim, depois de dois anos de turbulentas aventuras e viagens pelo Oriente…
Dois dias antes, recebera aquela mensagem lacónica do irmão e não hesitara, logo arranjara voos e regressara. Tinha uma profunda ligação à avó que a criara de pequenina desde a morte da mãe! Não podia deixar a avó partir sem se despedir!
À chegada ao aeroporto, Alice soube que a avó estava em coma na sequência de um inesperado AVC, mas o irmão ia partir de imediato numa viagem relâmpago de negócios e só voltaria no dia seguinte.
Chegara a Lisboa a 17 de março, apanhara um táxi e correra para o hospital. Tinham- na deixado entrar no quarto e ficara de mão dada com a avó, a falar- lhe e a cantar- lhe baixinho até ao seu último suspiro, ao início dessa noite.
Agora, já no dia 19 de março, depois do enterro da avó, cumpridos os necessários procedimentos e terminadas as cerimónias religiosas – que respeitava, mas tão pouco lhe diziam – Alice voltava a entrar em casa da avó Ju. Entrava sozinha. E a sensação era estranha!
Entrou no quarto da avó com um misto de reverência e comoção. Toda a casa cheirava à avó…
Beijou a almofada, alisou a colcha, acendeu a luz do pequeno candeeiro e sentou – se numa cadeira em frente ao sofá da avó, como se quisesse voltar a conversar com ela, ou ouvi- la apenas falar lá desse local onde se encontrava agora. Apoiando a cabeça nas mãos e tapando os olhos, chorou longamente…
A noite caía. De repente, enquanto enxugava as lágrimas, Alice olhou para a palma da mão esquerda e lembrou- se da última conversa com a avó Ju, quando decidira partir para o Oriente.
Pegando- lhe na mão esquerda, a avó mostrara- lhe na palma da sua mão, um quadrado com duas linhas diagonais e dissera- lhe: ‘Sei que vais partir à procura do sentido da tua vida! Quando perceberes que está precisamente aqui no centro destas duas linhas aquilo que tanto procuras já não precisarás de ir tão longe…mas irás descobri- lo por ti, eu sei!’
E lembrou- se do filme da sua vida: depois de uma infância feliz e acarinhada, sempre com a avó que tanto amava, recordou como a avó ficara triste quando ela, já adolescente, abandonara a catequese e a ida à Missa. Não escondera a sua tristeza, rezava, mas não insistira. Depois, percebera que Alice mudara de visual, tinha novos amigos, um tanto ‘alternativos’ , com quem começara a sair, a fumar e a beber. Não escondera a sua preocupação, falara com ela seriamente uma só vez, rezava, mas não a proibira de sair com eles. E Alice em breve mudara de amizades. Depois, fora a escolha do curso.
Alice tinha sido sempre boa aluna, começara Medicina, a meio do curso cansara- se e mudara para Enfermagem, mas no último ano decidira fazer uma pausa para viajar até ao Oriente, conhecer escolas budistas, e ‘encontrar – se consigo própria’. A Avó Ju sempre ouvia Alicinha com atenção, carinho e firmeza, não concordara nada com a interrupção do curso, mas entrara no quarto, fechara a porta e depois de algumas horas de silêncio, dissera- lhe que teria de trabalhar primeiro para pagar essas viagens e que lhe parecia uma perda de tempo… sugerira mesmo, por que não acabar primeiro o curso de Enfermagem e fazer antes uma estadia como voluntária em África ?
Alicinha contudo, insistira em partir à descoberta de si… Sentia – se insatisfeita, acabara namoro e queria esquecer… ansiava por alguma coisa que não sabia o que era…
E dez meses depois, Alice partia.
A avó já nem dormia nas vésperas da partida, e nesse dia, , de lágrimas nos olhos, receosa dos perigos que a neta iria enfrentar, pensando que poderia não voltar a vê- la ,pediu – lhe que levasse sempre consigo aquela pequena cruz de pau. Disse- lhe ainda que na terceira gaveta da cómoda do seu quarto , onde tinha um pequeno Oratório, havia uma caixinha de prata que era para ela. Acontecesse o que acontecesse, Alicinha, um dia, deveria vir buscar a caixinha que era para ela…
Arrependida por tão longa ausência, embora se falassem pelo telefone, de vez em quando, Alice lembrava- se agora das longas conversas com a avó Ju e recordou- se da recomendação … levantou-se, dirigiu- se ao Oratório, olhou- o por momentos, fixamente, e viu a imagem de S José de que a avó tanto gostava; depois, abriu a gaveta da cómoda e encontrou a caixinha de prata cuidadosamente embrulhada em papel de celofane e com seu nome colado por baixo.
Ao abrir a caixa, encontrou uma estampa amarelada e gasta, de S José, e por trás com a letra inesquecível da avó, estava escrita a data de 19 de março e uma breve dedicatória: ‘ Para a minha querida Alicinha se lembrar de pedir a S José que me leve, quando eu adoecer!’Depois encontrou várias fotos suas: da 1 a Comunhão, de uma festa de anos com primos no Jardim Zoológico, do dia em que ganhara o primeiro lugar na competição de natação, da primeira festa em que saíra vestida a rigor… e por último a foto das duas à porta de casa, no dia em que partira para o Oriente.
Religiosamente guardados, encontrou os postais que enviara à avó do Nepal, Bangladesh, India…no fundo da caixa, encontrou ainda uma fotografia da mãe e o pequeno terço de prata da sua 1 a Comunhão.
Despejando a caixa retangular sobre a cama, viu um papel dobrado em quatro. Abriu- o e reconheceu na foto, a palma da mão da avó, com umas linhas desenhadas a tinta: era um quadrado com duas linhas cruzadas e mesmo no centro das linhas um ponto escuro. Ao lado, a avó Ju tinha escrito: ‘Querida Alicinha espero já tenhas descoberto o sentido da tua vida e a tua felicidade! Este quadrado representa a tua vida, a tua casa e o ponto central é Cristo, Senhor da minha vida… e da tua! ‘
Então, voltando a chorar longamente, Alice deitou- se sobre a cama da avó, pousou a cabeça na sua almofada, tapou – se com a colcha e lembrou- se, espantada, que era dia 19 de Março, dia de S José.
Estava decidida a mudar de vida, voltar ao curso de Enfermagem, e ao adormecer, pareceu- lhe sentir a avó Ju a aconchegar- lhe a colcha…